Cidadania e moralidade fiscal[1]

Havendo recente deliberação do Conselho Nacional de Educação reposto o Direito Financeiro como conteúdo obrigatório no ensino jurídico nacional e considerando o momento juspolítico do País, com profusão de emendas constitucionais financeiras e tributárias, vigentes ou propostas, importante considerar certos conceitos e valores fundamentais da República brasileira, “livre, justa e solidária” (art. 3º, I, da Constituição).

Cidadania Fiscal é o coletivo do povo que paga tributos para custeio dos serviços públicos a bem da sociedade.  Essa expressão tem conteúdo mais amplo que cidadania política na Teoria Geral do Estado: abrange pessoas jurídicas e pessoas físicas, e aqui não apenas eleitores, mas potencialmente os incapazes, os estrangeiros e todos os anônimos contribuintes“de facto”sobretudo num esquema muito forte de tributação indireta como é o sistema tributário brasileiro.

De outro lado, o tema da moralidade fiscal[2], a que se fez primeira referência em trabalho de 1999[3] (As contribuições parafiscais no STN e a moralidade fiscal), imbrica direito, ética e política, face ao risco de o agente público se valer do poder para proceder desonestamente, o mais das vezes tanto na redação como na aplicação da legislação.

Além de jurídica (sujeita ao Direito), a atividade financeira, ética[4] que é, rege-se pela probidade das opções, que se querem, ademais de justas, honestas e dirigidas à finalidade de atenderem ao Bem Comum.  Corolário da ética, a transparência[5] é uma exigência que se impõe às leis tributárias e orçamentárias, à contabilidade pública e às prestações de contas.

Assim, o intolerável desvio de comportamento, que é a imoralidade fiscal, atrai a censura do Direito, não se admitindo a infidelidade governamental[6], do Legislador omisso ou do Administrador relapso no descumprimento das políticas públicas que necessitam da provisão e gasto dos fundos necessários à sua fiel execução[7].

A observância da moralidade fiscal gera a legitimidade do agir estatal, sem o que a cidadania fiscal não se pode convencer da idoneidade das políticas públicas e da justiça da tributação que as financia.

Deve assim o bom governo conformar a atividade financeira à vontade democrática. Daí entender-se que sem democracia fiscal inexiste democracia política.

Mas…, não é que se vivencia hoje um dilema em matéria fiscal, que é a composição do orçamento, a partir de uma excrecência constitucional? Sim, trata-se das “emendas parlamentares individuais” (CF, art. 166, § 9º)[8], codinome atual para as caudas orçamentárias, proibidas desde o Ato Adicional de 1926 à Carta de 1891.

Denunciou-se essa impropriedade em textos como “Fixar despesa cabe ao Legislativo, não a cada integrante[9]” (de 2014) e “Pelo controle judicial do orçamento impositivo de emendas individuais[10]” (de 2015).

Piores agora, sem previsão constitucional, são as “emendas do relator-geral”[11] do Orçamento, figura introduzida pela Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020 e na LDO para 2021: certamente mais que um indivíduo parlamentar, tem-se um super-homem orçamentário. Tal concentração de poder acaba de levar a um estranhamento entre Legislativo e Executivo, quando se percebeu, num orçamento já atrasado em quatro meses, que rubricas de despesas obrigatórias foramsubestimadaspara reforçar emendas parlamentares, num “déjà vu” de peça de ficção.

Essa prática reprovável se assemelha a outra, de inflar a previsão de receita tributária para acomodar despesas sem lastro financeiro, isso quando não se aposta nas inconstitucionalidades úteis (blague, s.m.j, de Sepúlveda Pertence), a busca de receitas que adiante serão glosadas no Judiciário…

É de se perguntar: úteis a quê? Por que será que no Brasil a litigiosidade fiscal chega a índices estratosféricos, em que as execuções fiscais, por exemplo, montam a 39% dos processos pendentes no Judiciário[12]? Somem-se os mandados de segurança, as ações ordinárias e as ações de controle concentrado, e ter-se-á um número ainda mais escabroso!

O recorrente desrespeito à cidadania fiscal, rima com estelionato tributário, que, pela regressividade do sistema, é mais cruel contra os menos favorecidos. E neste ponto traga-se à colação o princípio cardeal da capacidade contributiva.

Se a Constituição tem como objetivo fundamental a construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º) com a determinação de graduação da carga tributária consoante a capacidade econômica[13] (art. 145, § 1º), ademais de prever que o Estado obedeça ao princípio da moralidade(art. 37), então é de se indagar se sob essa mesma Constituição vive-se a democracia fiscal no País. Do ponto de vista da capacidade contributiva, parece que não.

É notória a regressividade do sistema tributário: a tributação direta sobre a renda responde por apenas 7,19% do PIB, a propriedade, 1,54%, e a tributação indireta sobre os bens e serviços, 14,32% (só o ICMS grava 6,70% do PIB); então, flagrante é a injustiça fiscal, malgrado a promessa constitucional de justiça e solidariedade no bojo do “estado democrático de direito”, como anotado no recente estudo Direito Financeiro e Tributário em evolução. Uma retrospectiva e perspectivas pós-pandemia[14].

A imoralidade está em que, no País, quem menos tem paga mais imposto. Note-se que, por vício constitucional e omissão legislativa, no Brasil não se tributam heranças localizadas no exterior[15] e pouco o são as domésticas (0,11% do PIB[16][17]); pagam quase nada as terras rurais (apenas 0,02% do PIB[18]) e são isentos os dividendos, enquanto os rendimentos do trabalho são gravados praticamente pelobruto, devido a deduções pífias[19], tabela de incidência com defasada atualização (hoje acumulada em 113,09%, segundo o SindiFisco[20]) e fictícia progressividade – tudo a favorecer a concentração de riquezas, portanto injustiça e imoralidade fiscal.

As contribuições são outro caso de imoralidade, constitucional e legal. Sua origem italiana e francesa, corporativa e tangenciadora da legalidade tributária, explica as suas vicissitudes no sistema tributário brasileiro: as contribuições mais relevantes parecem impostos sonegados à federação pela União; afetadas, já foram surpreendentemente desafetadas por emendas constitucionais de ocasião, e representam hoje um sério obstáculo à racionalidade do sistema tributário[21] – trazem fatos geradores economicamente superpostos ou duplicados, – e algumas contribuições sendo, mesmo, impostos mal disfarçados, arranham as imunidades tributárias, a risco de ser agora o caso da projetada contribuição sobre bens e serviços (CBS) se não se mantiverem as isenções atuais de PIS e COFINS sobre os livros e seus insumos.

Haverá perspectivas alvissareiras ao fim do túnel?  Quer-se crer que sim.

Em 2016, tratando de contribuições profissionais, o Supremo Tribunal Federal reconheceu às expressas que “a progressividade e a capacidade contributiva são os fundamentos normativos do Sistema Tributário Nacional” (ADI 4697[22], de 6.10.2016), e, no caso da quebra do sigilo bancário (RE 601.314), que “… a igualdade é satisfeita no plano do autogoverno coletivo, por meio do pagamento de tributos, na medida da capacidade contributiva do contribuinte” (p. 36-37)[23]; e neste momento o STJ está avançando na discussão da intributabilidade da correção monetária nas aplicações financeiras em renda fixa (REsp 1.660.363) [24].

Ou seja, como sempre se defendeu, todos os tributos devem observar a capacidade contributiva[25].

Então, quanto à garantia da justiça fiscal, quer parecer que o Judiciário está maduro para o próximo passo, na evolução da jurisprudência em matéria de capacidade contributiva: não dizer apenas que este ou aquele tributo a respeita, mas declarar também que certo tributo concretamente viola a capacidade contributiva.

Assim, quanto ao imposto de renda das pessoas físicas, espera-se que o Supremo reveja precedentes anteriores[26], em que, data venia,  prestou deferência à injustiça e à imoralidade fiscal ao negar aos contribuintes do IRPF a atualização das tabelas de incidência e dos hipodescontos de dependentes – tudo em violação da capacidade contributiva e que implicam em inconstitucional aumento inercial de imposto, sem lei nova. Vê-se aqui locus de ponderação de princípios, favorável à capacidade contributiva, graças à eficácia positiva do princípio e respeito à moralidade fiscal para com a Cidadania.

Outra alternativa seria trazer à colação a correção monetária legislada para os créditos tributários à semelhança do que se fez com a correção das restituições de tributos indevidos (igualdade fiscal; e art. 108, I, do Código Tributário Nacional); ou, ainda, aplicar-se a capacidade contributiva como vetor de interpretação da base de cálculo do imposto sobre a renda (art. 153, III, da CF e art. 43 c/c 108, II, do CTN). É que o conceito de renda está deturpado a ponto de implicar em tributação do que não é renda, mas, sim, patrimônio do contribuinte, adentrando ademais no espaço reservado à sua subsistência, já afetada por pesada tributação indireta e pelo custo do ensino particular à mingua de escola pública gratuita e de qualidade, por exemplo. 

E, se o custo “per capita” do aluno da escola pública invocado pelo Fisco for aquele correspondente ao indigente abatimento por dependente constante da lei do imposto, então, pior, expor-se-á a miséria em que se encontra a Educação pátria.

Se na lição de Marçal Justen Filho[27]: “A moralidade pública (…) exclui a obtenção de vantagens reprováveis ou abusivas do Estado para si próprio. Não se torna válida a espoliação dos particulares como instrumento de enriquecimento público”, então, concorde-se que a presumível isenção do Estado ao legislar a respeito das relações privadas pode ficar comprometida quando da edição de leis envolvendo a tutela dos direitos e garantias individuais, como é o caso da capacidade contributiva, limitante da lei de tributação, na medida em que o Estado, ele mesmo, é parte na relação jurídica; nesses casos, a presunção de legitimidade da lei corre o risco de tornar-se ficção[28].

Impõe-se ao Estado brasileiro uma autocrítica em matéria de orçamento e tributação, seja por reforma constitucional, seja também através de revisão da legislação, para melhor planejamento e distribuição equânime da carga tributária, sob pena de se perpetuar um quadro fiscal de reforço da histórica desigualdade no País.

E, quando se refere a reforma constitucional, cogita-se de algo diverso do que se vem pregando desde a década de 1960 – reformas e ajustes setoriais em Constituições sujeitas a emendas sem-fim; se esse jeito de constitucionalizar fosse razoável não haveria hoje, apenas, 109 emendas constitucionais, além das seis emendas de revisão, em 33 anos de Carta dita cidadã. De junho de 2019 até agora foram 9 emendas!

Se soava absurdo uma Constituição tratar de juros reais — hoje prolixa quanto a bases de cálculo e alíquotas tributárias, tendo um Ato de Disposições Transitórias rabilongo e infindo, e que precisou ser emendada (Emenda nº 106) para enfrentar-se financeiramente a pandemia do COVID-19, — agora tem-se nela Emenda para tratar de calamidades públicas nacionais (EC nº 109), a qual mais parece umalei de responsabilidade fiscal constitucionalizada (cogitar-se-á do mesmo com o CTN e a Lei nº 4.320 ?)

Não se pode ter a Nação regida por uma Constituição exageradamente detalhista, com pouco espaço para deliberações políticas e administrativas desassombradas; tudo parece constitucionalizado e prontamente à mão do Poder sem voto, que sofre das suas limitações próprias, como em qualquer país do mundo. Junte-se a isso o agir monocrático, o soft law e as interpretações pouco ou nada debatidas nos outros Poderes e na sociedade, e então sobrevêm solavancos institucionais.

Essa situação talvez se debite à própria imoralidade governamental, parte da crise de autoridade e de legitimidade em que se vive no Brasil, onde qualquer lei ou ato administrativo parece objeto de desconfiança e contestação judicial prima facie, contribuindo para expandir um Poder já hipertrofiado.

Após as frustrações do Mensalão, do Petrolão, e da presente pandemia do Covidão – com quadro de endêmica corrupção, que parece sem limites, em meio a extrema desigualdade e injustiça socioeconômica vigentes – necessário encarar o presente com olhos postos no futuro.

O ambiente de imoralidade fiscal é sintoma de um mal maior: a corrupção dos valores e a anestesia cívica, do que a anestesia fiscal é mera faceta. Urge transformar o ambiente fiscal em algo seguro e previsível, sustentável e favorável ao trabalho, em todas as suas dimensões, da lavra própria à indústria autônoma, e ao seu fruto maior que é o progresso prometido desde a Independência.  Revive Tiradentes!

De aspirar-se então à refundação do Brasil; com a instituição de uma democracia substancial nesta Terra de Santa Cruz – a começar pela inadiável decisão política de educar o povo a fim de que nele germinem ciência própria, espírito altaneiro, e lideranças capazes e estadistas dignos de motivar, unir e governar a Nação na perspectiva do Bem Comum. O resto virá por acréscimo.

E, se se há de promover a democracia, insista-se: sem democracia fiscal não há democracia política!


[1] Palestra proferida em 5 .05.2021 por ocasião do lançamento da obra Diálogos de Direito Financeiro e Tributário. Estudos de José Marcos Domingues, selecionados e comentados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021 (MOREIRA, Clara G.; CARNEIRO, Júlia S. A. – coords.). Diálogos revigora uma crença no direito justo, que ordene os bens e a sua distribuição equitativa, com vistas a que, num regime de liberdade, e em clima de igualdade, desenvolvam-se o espírito e o labor dos seus destinatários.

Texto publicado no JOTA. Info, em 17 de maio de 2021 (cf. in https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cidadania-e-moralidade-fiscal-17052021).

[2] A moralidade fiscal extrapola a atividade financeira, norteando a feitura da legislação financeira, os ritos e decisões dos processos tributários, bem assim o proceder da atividade judicante.

[3] Cf., do Autor, As contribuições parafiscais no sistema tributário nacional e a moralidade fiscal, in Estudos Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 1999 (REZENDE, Condorcet – coord.), pp. 301-321.

[4] Cf., do Autor, Políticas públicas para os direitos humanos: a atividade financeira do Estado, in Direitos humanos em espécie. KLAUSNER, Eduardo Antonio (org). – Rio de Janeiro: Ágora, 2020, pp. 275-330, esp., pp. 280 e seguintes.

[5] PANCRAZI, Laurent. Le príncipe de sincérité budgétaire. Paris: L’Harmattan, 2012, p. 193.

[6] Cf. Recurso Extraordinário n° 271.286 AgRg, in Revista Trimestral de Jurisprudência. Brasília: STF, v. 175, pp. 1212-1213 (“… gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”); e também no RE 393175 AgR (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=402582) e no RE 271286 AgR (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538)]. 

[7] Cf. Celso de Mello, decisão monocrática na ADPF nº 45, in http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%2845%2ENUME%2E+OU+45%2EDMS%2E%29%28%28CELSO+DE+MELLO%29%2ENORL%2E+OU+%28CELSO+DE+MELLO%29%2ENPRO%2E+OU+%28CELSO+DE+MELLO%29%2EDMS%2E%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/bl9jp2x); e Apelação Cível nº 2007.001.11057, TJ-RJ, 2ª Câmara Cível, Relator: Des. Jessé Torres, julgada em 4.04.2007, publ. no DJRJ em 16.04.2007, p. 31-35 [“Tergiversação inaceitável (…)  frustrando as políticas estabelecidas no art. 227 da Constituição…”].

[8] Cf. art. 166… “§ 9º As emendas individuais ao projeto de lei orçamentária … (Incluído pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)”.

[9] Cf. www.conjur.com.br/2014-fev-14/jose-domingues-fixar-despesa-cabe-legislativo-nao-cada-integrante.

[10] Cf. www.conjur.com.br/2015-fev-19/jose-domingues-controle-judicial-orcamento-impositivo.

[11] Cf. Lei nº 13.898, de 11.11.2019 art. 6º § 4º II, c, 6 … emendas… 6. de relator-geral do projeto de lei orçamentária anual que promovam alterações em programações constantes do projeto de lei orçamentária ou inclusão de novas, excluídas as de ordem técnica (RP 9) – (incluído pela Lei nº 13.957, de 2019)” e lei nº 14.116, de 31.12.2020, art. 7º, § 4º, II  c,  4:…emendas… 4. de relator-geral do projeto de lei orçamentária anual que promovam alterações em programações constantes do projeto de lei orçamentária ou inclusão de novas, excluídas as de ordem técnica (RP 9)”.

[12] Cf. CNJ em números ( https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_V2_SUMARIO_EXECUTIVO_CNJ_JN2020.pdf ).

[13] Cf. HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Económica y Sistema Fiscal. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 108-109); SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2005, p. 297.

[14] Cf., do Autor, in https://josemarcosdomingues.wordpress.com/; idem in https://ibedaft.com.br/direito-financeiro-e-tributario/.

[15] Cf. RE 851108, in https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=RE%20851108&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true&origem=AP (acórdão de 1.03.2021, publicado em 20.04.2021). Em de 3.05.2021 o Procurador-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO nº 67, argumentando que “… não houve promulgação até hoje, (…) falta de regulamentação para efetivação de norma constitucional (…) e pede fixação de prazo para editar lei complementar sobre o ITCMD.

[16] Cf.  http://www.receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf , p.12.

[17] Face a uma alíquota máxima de 8% definida pelo Senado Federal (cf. Resolução nº 9, de 1992).

[18] Idem, cf. nota 17 supra.

[19] Instrução:   VI – R$ 3.561,50 (três mil, quinhentos e sessenta e um reais e cinquenta centavos), a partir do ano-calendário de 2015. Dependentes – R$ 2.275,08.

[20] https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/01/4899816-tabela-do-imposto-de-renda-esta-defasada-em-11309–diz-sindifisco.html.

[21]  FGTS, CPMF, CSLL, FUST, FUNTTEL quota patronal, sistema “S”, Finsocial, depois Cofins, PIS…

[22] Cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12660374, p. 18 do acórdão. E, mais, “que o principal instrumento para a realização da justa distribuição da carga tributária é a progressividade” (cf. RE 602.347, p. 8).

[23] O STJ proclamara em 2009 ser “o princípio da moralidade aplicável de forma absoluta às relações de direito público e privado” (cf. REsp nº 1.134.665).

[24] Resp 1.660.363 – in https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/stj-dois-votos-a-favor-da-nao-tributacao-da-inflacao-em-aplicacoes-financeiras-16042021?utm_campaign=jota_info__ultimas_noticias__destaques_-_16042021&utm_medium=email&utm_source=RD+Station: “Na análise da ministra Regina Helena Costa, a correção monetária é um mecanismo de recomposição da desvalorização da moeda, e não acréscimo de capital. Para a magistrada, caso fosse considerado como acréscimo haveria violação ao princípio da capacidade contributiva.

[25] DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário. Capacidade Contributiva. Rio de Janeiro: 2ª ed., Renovar, 1998, pp. 77 e sgs.

[26] Cf., por todos, o RE 388.312, de 2011 (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628469 (itens 12 e 13 às fls. 154 e 155).

[27] Princípio da moralidade pública e o direito tributário, citado no voto do Ministro Marco Aurélio no RE 388.312 (cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628469, fls. 148). 

[28] Direito Tributário. Capacidade Contributiva (op. cit., n. 26 supra, pp. 163-164).

Live de lançamento de DIÁLOGOS DE DIREITO FINANCEIRO E TRIBUTÁRIO. Estudos de José Marcos Domingues selecionados e comentados*.

*Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2021 (Clara Gomes Moreira, Júlia Silva Araújo Carneiro – coords).

4ª capa do livro – Sem democracia financeira não há democracia política. O verdadeiro orçamento impositivo é aquele que legitimamente prevê a Receita sem inflá-la artificialmente para cobrir Despesa irresponsavelmente fixada, para ser integralmente executado, subordinando-se por isso mesmo a controle pelos critérios científica e constitucionalmente postos, que são a legalidade, a legitimidade e a economicidade.  É preciso conter o poder financeiro pela ótica da cidadania fiscal e pelo contínuo ajuste da tributação à riqueza ou capacidade contributiva dos cidadãos-contribuintes. O estudo da natureza jurídica dos institutos tributários e sua distinção de figuras financeiras outras, pela ótica conformadora fundamental dos respectivos fatos geradores, deve ser uma obstinação permanente. A leniência para com o “empréstimo de parcelas de base de cálculo” de tributos entre si, assim como a hesitante interpretação de fatos geradores interfederativos exemplificam a necessidade de observância daquele critério doutrinário para a distinção das figuras tributárias e financeiras outras. Constata-se no Brasil a utilização do sistema tributário como fator de reforço de histórica e crescente desigualdade que, sem transparência, tredestina recursos e induz evasão tributária em círculo vicioso. Diálogos permite a atualização crítica do pensamento de um professor por profissionais do Direito que revitalizam com sua mais jovem maturidade ideias que lhes pareceram merecedoras de consideração. José Marcos Domingues

Orçamento de guerra e outras vicissitudes[1].

Uma Emenda Constitucional contra o novo corona vírus. E agora?

O fenômeno da constitucionalização do direito financeiro e tributário é um desses capítulos já clássicos na doutrina. Principia na Magna Charta inglesa de 1215, gérmen da separação e controle dos Poderes estatais, ao dispor sobre tema sensível das finanças públicas, a contenção do poder político através de uma de suas mais pujantes expressões, que é o poder financeiro: “no scutage nor aid shall be imposed unless by the Common Counsel…” (art.12), ou simplesmente “no taxation without representation”, na famosa súmula legada pelos bretões à civilização humana.

Fato é que nas mais prestigiosas Constituições democráticas encontram-se disposições inspiradas naquela Carta Magna.  A profundidade do “no taxation without representation” não se esgota numa regra simplesmente tributária, ou de processo legislativo tributário, pois encerra em si algo mais denso, nada menos que o princípio da legalidade financeira; ali está embrionariamente a submissão da Administração Pública ao Parlamento também no atinente ao implícito poder de controle do uso dos dinheiros públicos; e, por que não, à necessidade de planejamento do gasto público a exigir a correspondente orçamentação: controle prévio e ulterior do plano de governo e de sua boa execução.

Esse princípio de legalidade financeira depois se especializaria em legalidade tributária e legalidade orçamentária: com a institucionalização das Finanças Públicas e a criação de tributos permanentes, da primitiva exigência de aprovação prévia a cada despesa de per si (embaixadas, guerras, aberturas de caminhos, construções de pontes e outras melhorias), passou-se ao necessário controle das respectivas arrecadações e suas relações com os gastos de manutenção e de investimentos públicos; em suma: controle da Receita e da Despesa, o que se haveria de fazer com base em um plano de governo (prometido ao povo em eleições – o orçamento) que, aprovado previamente, pudesse ser acompanhado pelo Parlamento, representação política do povo eleitor.

Dadas razões práticas, a periodicidade dos orçamentos e a respectiva auditoria (ou tomada de contas) seriam estabelecidas em bases anuais, ensejando a anualidade orçamentária e também a anualidade tributária.

Legalidade financeira, planejamento e controle dos dinheiros públicos, eis aí o cerne material da constitucionalização do direito financeiro. Como se vê no exemplo norte-americano, a sucinta cláusula “due process of law” foi origem de elaborações doutrinárias e jurisprudenciais acerca de garantias cidadãs como o “tax ability” (capacidade contributiva), bem explicadas entre nós por Sampaio Dória em seu memorável “Direito Constitucional Tributário e due process of law”.

Diferenças culturais à parte, nota-se hoje uma certa exacerbação da constitucionalização do direito financeiro e tributário, fenômeno que não é privativo deste ramo jurídico, mercê da progressiva expansão das chamadas constituições analíticas.

Nesta pandemia covid-19 vê-se que não foi suficiente atender às exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal-LRF (art. 65 da Lei Complementar, 101/2000), sendo necessário cogitar-se de Emenda Constitucional para permitir resposta válida a essa emergência de saúde e a fortiori da economia nacional, criando-se um orçamento de guerra com o afastamento da constitucionalizada regra de ouro das finanças públicas (art. 167, III, da Constituição federal: não pode o Estado endividar-se para custeio de despesas correntes; não deve o Estado comprometer os recursos do futuro para manutenção da máquina administrativa hoje). Fora de dúvida que esta regra tem por base o princípio da equidade intergeracional, bem lembrado pelo Professor Marcus Abraham em live recente. Mas o que se deseja realçar é que semelhante nível de detalhamento talvez não coubesse na Constituição, mas mais propriamente numa Lei Geral de direito financeiro, que é a LRF, onde bastaria a regra de ouro estar positivada. 

Fato é que não bastou ao Poder Executivo a decretação da calamidade pública, nem ao Congresso Nacional referendá-la, nem ao Supremo Tribunal reconhecer a observância da LRF; foi preciso cogitar-se de uma solene Emenda Constitucional, de nº 106/2020, para autorizar o endividamento extraordinário de combate à pandemia (art. 4º): soa demasiada mais uma Emenda (e já são mais de 105 em 32 anos!), que, ao fim e ao cabo, convalidou (art. 10) os atos já praticados pelo Governo à margem da Constituição, mas ao amparo do poder-dever de administração, reconhecendo, pois, o endividamento condenado pela regra de ouro indevidamente constitucionalizada, à semelhança d o que foi a regra do juro real na redação originária da CF de 1988 (art. 192, § 3º) – revogada pela EC nº 40/2003.

Diante da necessidade de revisão do pacto federativo nacional, estratificado na Constituição, cujo detalhamento financeiro-tributário poderia estar melhor detalhado em leis gerais – de que é exemplo o Código Tributário Nacional – talvez seja hora de rever é o modelo, concentrando-se a Constituição naquilo que lhe é mais materialmente próprio.

Se após a pandemia covid-19 a Humanidade não será a mesma, também não será o mesmo o ambiente constitucional pátrio porque já não será a mesma a Cidadania brasileira: mais madura e consciente, mais convencida de que sem democracia financeira não há democracia política.


[1] Publicado in  https://www.conjur.com.br/2021-fev-02/jose-domingues-orcamento-guerra-outras-vicissitudes .

Live-lançamento do livro Diálogos de Direito Financeiro e Tributário

Com muita satisfação, convido todos os amantes do Direito Financeiro e Tributário a assistirem à LIVE de lançamento do nosso DIÁLOGOS, livro organizado por Clara Gomes Moreira e por Júlia Silva Araújo Carneiro, com apoio do Grupo de Debates Tributários – GDT e participação especial de Marcus Abraham.

Orçamento impositivo e permissividade legislativa(*).

José Marcos Domingues

O momento é de edição dos orçamentos anuais, consoante LOAs votadas nos diversos parlamentos federal, estaduais e municipais. Está no art. 35, § 2º, III, do ADCT[i].

O que se nota em vários desses textos é que se insiste em prática inconstitucional de delegação legislativa ao Chefe do Poder Executivo para transpor, remanejar ou transferir verbas orçamentárias, isso ao pretenso abrigo do art. 167, VI, da Constituição Federal[ii]. Exemplos não faltam; variam os percentuais de tímidos 10%  a comprometedores 30%, como vem de ser aprovado pela Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro (“15/12/2020 · Atendendo a um pedido do prefeito eleito (…), a Câmara Municipal do Rio aprovou nesta segunda-feira o orçamento para 2021, com uma autorização para remanejamento de até 30% dos recursos por decreto. Atualmente, esse percentual é de 15%.” – cf. https://oglobo.globo.com/rio/paes-podera-remanejar-orcamento-previsto-para-rio-em-ate-30-entenda-1-24797318).

Governo novo, orçamento de governo velho, dir-se-á para justificar o pedido e a benesse de frouxidão na execução orçamentária; mas, precisamente porque as eleições elegeram Prefeito e Câmara novos é que o parlamento em fim de mandato haveria de respeitar mais rigorosamente a regra do jogo constitucional (!), sem favores ao arreglo proposto pelo Alcaide recém eleito.

Mais importante lei votada anualmente, o orçamento “fixa[iii]” a Despesa Pública (di-lo o § 8º do art. 165), pois à carga tributária obrigatória corresponde o gasto justo e necessário para prover às políticas públicas, tudo objeto de lei.

A liberdade de antemão beijada outorgada ao Chefe da Administração para adequar a lei às eventuais necessidades, vicissitudes ou caprichos do Gestor soa a flagrante delegação legislativa expressamente proibida pela Constituição, por isso mesmo, ademais, violadora da separação de poderes, cláusula pétrea do vigente Estado Democrático de Direito (arts. 48, 60, § 4º, III, e 62, § 1º, I, d, c.c 167, § 3º, tudo em harmonia com o art. 1º da CF; e art. 25 e seu inciso I do ADCT).

De fato, a menos que se persista no acolhimento da superada tese de raíz labandiana prazerosa ao novecentista chanceler de ferro e nada democrático Otto von Bismark, de que o orçamento seria um mero ato materialmente administrativo, não se pode admitir que o Legislativo autorize cegamente uma modificação da LEI orçamentária por DECRETO executivo. 

Ora, quando no seu art. 167, VI, a Constituição admite, excepcionalissimamente, a necessária autorização legislativa prévia para transposição, remanejamento ou transferência de  verba orçamentária pelo Executivo, pressupõe que caso-a-caso o Administrador anteveja — por exemplo uma provável quebra de receita (originária ou derivada) ou uma vislumbrada impossibilidade fática de certa despesa orçada (quiçá, face a calamidade) — e, pois, justifique ao Legislativo as vicissitudes de que se trata; e então, durante o exercício financeiro, PEÇA autorização para, se for bem, proceder daquela maneira extraordinária; extraordinária porque discrepante do padrão legislativo estabelecido pela Carta Magna.

Do contrário esvai-se o sistema de freios e contrapesos de controle constitucional de um poder sobre outro, máxime em matéria orçamentária, que diz com os recursos do povo, produzidos pelo trabalho do povo, destinado a satisfazer as necessidades do povo através do cumprimento das políticas públicas, estas legisladas a partir de nortes dados pela Lei Fundamental.

Importante assinalar que, em respeito à separação de poderes e seus citados freios e contrapesos, a excepcional hipótese de delegação legislativa que é a medida provisória, ressalva expressamente a proibição de MPs em matéria de orçamento (art. 62, § 1º, I, d), porque este é um tema sensível e fundamental para o exercício do controle do Legislativo sobre o Executivo (e isso, diga-se, desde os primórdios do constitucionalismo jusfinanceiro que remonta à Magna Charta bretã).

É de se indagar a quem interessa a indisciplina orçamentária? O orçamento há de ser cumprido integralmente, por não ser meramente autorizativo[iv]. Assim, a Lei Orçamentária não pode legitimamente abrir espaço genérico para remanejamentos de verbas sem controle prévio do Legislativo, que não se pode demitir do dever de controlar a Administração.

Lembre-se que, vigente a Emenda 100/2019 (art. 165, § 10. “A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”. Portanto, são superlativamente inconstitucionais as disposições de leis orçamentárias que disponham sobre esse cheque em branco com que os Legislativos do País teimam em presentear os respectivos Executivos.  Quando se apresentam orçamentariamente irresponsáveis as autoridades públicas, o Judiciário, provocado, tem dado a sua prudente resposta, realizando controle constitucional orçamentário complementar[v] necessário à tutela dos direitos fundamentais.

O mal das finanças públicas brasileiras não é apenas de gestão, mas sobretudo de desrespeito ao Direito.

Ora, sem democracia financeira não há democracia política, pena de ficar desprotegido o cidadão-contribuinte, em suma o povo que é o titular de todo o Poder (parágrafo único do art. 1º da Constituição). Essa verdade, sentida na falta de dignidade na saúde, transporte, educação e segurança parece não ter chegado a certas mentes parlamentares, que testam os limites da tolerabilidade de uma sociedade desatendida e sem condições de desenvolver-se com liberdade, porque paga tributos demais (muitas vezes injustos[vi]) e sem retorno; porque lhe falta governança pública e republicana.


(*) Cf. in https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/orcamento-impositivo-e-permissividade-legislativa-11012021

[i] “III – o projeto de lei orçamentária da União será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa”.

[ii] “VI – a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa”.

[iii] “§ 8º A lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, (…)”.

[iv] Cf. nosso recente Contas rejeitadas e orçamento fraudado, in https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/contas-rejeitadas-e-orcamento-fraudado-29122020 .

[v] Cf. verbi gratia ADIs 2.925 e 4.048, ADPF 45, STA 145 e RE 581.352.

[vi] “Agora, cogita-se de eliminarem-se as poucas restantes deduções do imposto de renda com o propalado fim de se financiar programa de renda mínima. Num superlativo “dèja vu”, aumentar-se-ia ainda mais o imposto de quem já paga demais, os assalariados de renda média; ou seja, a classe média – o segmento social que sustenta qualquer governo…” (cf. nosso https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/imposto-de-renda-e-capacidade-contributiva-deja-vu-04092020 .

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS DIREITOS HUMANOS. A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO(*)

José Marcos Domingues

Graças a este alargamento do modelo do Estado de direito, consistente na imposição à esfera pública não somente de limites mas também de vínculos, não só de proibições de lesão (ou garantias negativas) mas também de obrigações de prestação (ou garantias positivas), o Estado acresceu e reforçou as suas fontes de legitimação.

FERRAJOLI

Resumo

Após apresentar o conceito e as características da atividade financeira pública, e analisar sua origem e evolução histórico-jurídica, propondo uma releitura dos princípios orçamentários à luz do estágio atual do Estado de Direito, este ensaio aborda a temática dos direitos humanos e das políticas públicas destinadas à sua implementação, seara em que teleologia e garantismo se dão as mãos em defesa da dignidade humana consoante adequada interpretação e aplicação dos ditames constitucionais que justificam e legitimam o controle jurisdicional do orçamento e do gasto público.

Sumário

1. Introdução. 2. A atividade financeira do Estado. 2.1 Características da atividade financeira. 2.2 Conceito e inserção jurídica. Poder financeiro e poder tributário. 3. O orçamento, instituto central da atividade financeira. 3.1 Origem política. 3.2 Fundamentação jurídica. 4. Escorço histórico da atividade financeira do Estado e do orçamento.4.1 Principiologia orçamentária. 4.2 Os direitos humanos e o orçamento. 5. Controle judicial do orçamento e do gasto público. 6. Considerações finais.

1. Introdução

Instituição necessária ao convívio e desenvolvimento humano, o Estado tem por fim a realização prática das aspirações gerais da sociedade, tais como o estabelecimento da ordem interna para a promoção da segurança coletiva (externa e interna), da igualdade e da liberdade individual, o desenvolvimento material, moral e intelectual do povo.

O Estado foi concebido pelo espírito humano para garantir as justas expectativas de seres pensantes dotados de um anseio natural de liberdade e de um anseio racional de igualdade, sem cuja satisfação o primeiro não tem condições de se realizar.

Trata-se da dignidade da pessoa humana, atributo que lhe é inato. Os chamados direitos humanos nada mais são do que reflexo jurídico daquele caráter que clama por respeito e por garantia.

Contemporaneamente, apresenta-se toda uma teorização em torno da constitucionalização dos direitos humanos, mercê de cuja positivação se considerariam fundamentais[1], como se não fossem bastantes em si, a exigirem sua constituição por obra de uma decisão legislativa. Fundamentais em realidade parecem ser os direitos humanos em si mesmos, objeto de uma mera declaração positiva para clareza, mas por isso mesmo sujeitos à indigência da respectiva decisão política e da linguagem correlata em que é vazada.

Diga-se, então, que o Estado existe para garantir a satisfação dos direitos das pessoas humanas que o criaram; ou seja, o Estado existe para promover os direitos humanos; e, assim, a tributação, o orçamento e o gasto público, servem pragmaticamente ao atendimento dessa meta fundamental.

O Estado recebe atribuições concretas de que se deve desincumbir sempre visando ao Bem Comum, em última análise, ao bem dos indivíduos que o constituíram. Estes, por conseguinte, devem contribuir para os encargos da coletividade por força da solidariedade[2] social que preside o relacionamento interpessoal. Do ponto de vista do Direito Financeiro, trata-se do dever de cada qual de pagar tributos para financiamento dos serviços estatais em prol da comunidade, dever que nasce, por sua vez, conformado pelos direitos individuais.

O Estado age através dos serviços públicos, que devem se orientar por políticas públicas, que são o conjunto de ações estatais dirigidas à consecução de um fim público.

No direito pátrio, anota-se a relevância da vontade estatal[3] no qualificar determinados serviços como públicos, pois deverão atender a necessidades gerais da população também designadas como públicas por decisão das instâncias políticas do Estado. O mesmo se dá no direito estrangeiro, em que se anota que os fins estatais se revelam quer nas Constituições[4], quer nas legislações em evolução[5] quer ainda no processo de participação cidadã nos governos democráticos[6], tudo conforme seu desenvolvimento histórico, a influir no conceito e na substância das necessidades públicas[7].

O serviço público precisa ser financiado por recursos materiais a serem aportados pela Cidadania[8] ao Estado, a quem cabe sua gestão. A legitimação da atividade estatal de administração desses recursos dá-se pela sua conexão com as políticas públicas voltadas ao atendimento dos anseios da sociedade, em última análise, relacionadas à satisfação dos direitos humanos.

2. A atividade financeira do Estado

Estando imperiosamente presente na vida social como promotor do Bem Comum, o Estado precisa de receita para prover à despesa que financia o custo do serviço público.

A Despesa (ou gasto público) determina que o Estado desenvolva uma intensa atividade destinada a amealhar, gerir e despender os recursos demandados para a obtenção e administração dos bens e do pessoal empregados no serviço público, funções essas que progressivamente têm substituído os processos rudimentares de apossamento e submissão dos vencidos em guerras de conquista, ou mesmo daqueles submetidos à dominação da força bruta no plano interno.

Nesse contexto, a Receita se constitui no conjunto de recursos financeiros (foros, laudêmios, aluguéis, preços, royalties, ao lado do tributo, que é a sua expressão mais sofisticada e exuberante), destinados ao custeio da estrutura estatal e dos serviços públicos para atendimento das necessidades públicas.

O tributo[9] é o instituto criado pelo Homem que permite, num clima de liberdade[10], racionalizar juridicamente o esforço de cooperação individual em prol da comunidade: ao mesmo tempo em que representa uma contribuição, constitui uma obrigação, permitindo ao seu destinatário exigi-lo daqueles que, por uma razão ou por outra, deixem de prestá-lo ou o façam em desconformidade com a norma vigente.

Dada a superação da escravização e da espoliação do vencido[11], do escambo, cumpre ao Estado a aquisição de bens através do pagamento em dinheiro dos citados recursos materiais (prédios, equipamentos, material de consumo) e humanos (trabalho de seus funcionários e serviços contratados a terceiros). Surge, assim, a chamada atividade financeira do Estado, que se consubstancia exatamente na captação de receita, sua gestão e seu dispêndio[12]. A monetização da economia atinge evidentemente o tributo, que passa a ser prestado em dinheiro[13]. A atividade financeira é estudada pela Ciência das Finanças[14] e pelo Direito Financeiro; aquela se debruça sobre o fenômeno financeiro com um olhar interdisciplinar da Economia, da Política, da Sociologia e do Direito; este centra-se nos seus aspectos jurídicos.

2.1 Características da atividade financeira.

Do ponto de vista da Ciência das Finanças, a atividade financeira é a atividade econômica do Estado consistente na utilização de meios escassos (recursos pecuniários) na busca de opções para a satisfação das infinitas necessidades públicas[15].

Pública é a própria atividade, em si mesma, pois gere recursos do Povo, em nome deste, tendo como agente o Estado, que serve à Cidadania, na sua dimensão específica de Cidadania Fiscal. Sendo pública, a atividade financeira é dotada do atributo da coercitividade jurídica: em razão de financiar a satisfação do Bem Comum, impõe-se aos seus destinatários, que não se podem furtar à ação estatal exercida em benefício da sociedade. Não se compreende que um serviço público essencial (como justiça, fiscalização, extinção de incêndios) possa deixar de ser custeado e prestado porque alguém entenda que lhe seria lícito recusar o serviço para, então, não aportar ao Estado os recursos correspondentes, como se o serviço público não fora de interesse público.

Política também é a atividade financeira, não só porque o agente respectivo é o Estado, mas também porque as opções de captação de receitas assim como as de gasto observam razões de conveniência qualificada pelo exercício do Poder (o poder financeiro). A incorreção políticada atividade financeira pode levar a tredestinação pelos caminhos dos privilégios ou dos desvios de finalidade, patologias que não podem ser olvidadas na temática da insuficiência dos recursos orçamentários.

Ética não pode deixar de ser a atividade financeira, regendo-a a probidade das opções acima, que se querem guiadas pela retidão e pela honestidade. A transparência da atividade financeira é hoje uma exigência ética, que se apresenta formalmente na redação das leis orçamentais, na contabilidade pública e nas prestações de contas[16]. O tema da moralidade fiscal[17] imbrica ética e política, pois não raro o governante ou o administrador público é tentado a se valer do feixe de poder que transitoriamente detém para proceder desonestamente. Intolerável desvio de comportamento, a imoralidade em geral, a financeira ou fiscal em particular, atrai a censura grave do Direito, não se tolerando a infidelidade governamental no dizer de José Celso de Mello[18], quer do Legislador omisso quer do Administrador relapso, por exemplo, no descumprimento das políticas públicas que necessitam da provisão e gasto dos fundos necessários à sua execução[19]. A atenção ao espírito constitucional em matéria financeira impõe ao governo o cumprimento do princípio de legitimidade que conforma a atividade financeira à vontade democrática.

A par de orientar-se, como visto, pelo princípio da moralidade[20], a atividade financeira é de natureza técnica, isto é, deve ter como referência o princípio da eficiência[21], visando atender o máximo de necessidades com o mínimo de recursos, a exigir economicidade no trato da coisa pública (art. 70 da Constituição).

A atividade financeira tem também caráter sociológico, pois, inspirada pela solidariedade social, deve priorizar o atendimento das necessidades públicas manifestadas ou encontradas nas camadas menos aquinhoadas da população, especialmente em países com alto grau de desigualdade socioeconômica e cultural[22]. Assim, as escolhas financeiras públicas devem atentar à raiz de dignidade humana e exigência de conscientização política de todos os estamentos sociais, sobretudo no que diz respeito à educação e à saúde, cujo acesso é garantido pelos direitos sociais.

A atividade financeira se reveste ainda de juridicidade, porquanto exercida com subordinação ao Direito. A legalidade financeira, radical dos princípios da legalidade tributária e da legalidade orçamentária, expõe o ângulo da ordenação jurídica por cuja ótica a atividade financeira é tradicionalmente objeto de estudo do Direito Financeiro[23]. Como toda atividade de fundo econômico, a atividade financeira rege-se naturalmente pelas leis econômicas (leis do ser). Mas o que se quer aqui precisar é que a atividade financeira, sendo uma atividade também jurídica, é subordinada às leis do Direito(leis do dever ser, que traduzem as conquistas e os anseios de uma dada sociedade). Neste ponto, para lá de se confinar à análise de normas estruturantes ou organizacionais das finanças públicas, o Direito Financeiro abre-se à percepção de que a regência jurídica da atividade financeira, atividade meio, se ilumina pela respectiva finalidade que é o financiamento da promoção do Bem Comum, a satisfação dos direitos humanos correlatos à dignidade da pessoa humana. Se para isso o Estado foi criado, a atividade financeira, expressão especial do agir estatal, deverá sintonizar-se com a proteção dessas prerrogativas fundamentais do homem; assim, os institutos do direito financeiro, como a atividade financeira e o orçamento público, estão a serviço dos direitos humanos, do seu contínuo revelar e progressivo florescer, não o contrário.

2.2. Conceito e inserção jurídica. Poder financeiro e poder tributário.

Considerando o exposto, define-se atividade financeira como o conjunto organizado de atos praticados pelo Estado para obtenção, gestão e dispêndio dos recursos públicos, pecuniários ou financeiros, atividade essa que é exercida nos termos da Lei, com a finalidade de suprir os meios necessários à satisfação das necessidades públicas, qualificadas superiormente pela atenção especial aos direitos fundamentais da pessoa humana.

A atividade financeira integra a função estatal[24] desempenhada pela Administração Pública, a função administrativa, exercida em virtude de autorizações[25] ou habilitações legais com a finalidade de, independentemente de provocação, atender o interesse público de forma concreta e imediata. A autoridade aplica a lei de ofício[26], sendo escravo dela[27].

Especialização da atividade administrativa[28], a atividade financeira é na verdade um conjunto ordenado de atos administrativos atinentes à gestão das finanças públicas praticados com a finalidade de atender o específico interesse público já assinalado; não prescinde do necessário planejamento (art. 174 da Constituição) com base no qual se deve cogitar do orçamento público como grande vetor da Receita e da Despesa, ou seja, da arrecadação e do gasto públicos, materializando em números as políticas públicas constitucionalizadas ou legisladas, assim vocacionadas à promoção do desenvolvimento humano, social e econômico. É que, como anota Juliano Veloso[29], ”o planejamento está diretamente ligado ao contexto de efetivação de direitos sociais”.

Conclui-se este item com uma referência ao Poder Financeiro e ao Poder Tributário ou Poder de Tributar, expressões particulares do Poder Político entregue pela sociedade ao Estado para gerir as Finanças Públicas com as prerrogativas e as responsabilidades inerentes a esse múnus. Embora especializações do poder político, deve-se esclarecer que não haverá verdadeira democracia política onde não existir democracia financeira. É que, no atual estágio civilizatório, o Estado age através dos serviços públicos financiados pela receita pública transformada em gasto público. O estudo da partilha constitucional de tarefas e rendas públicas, a análise dos limites financeiros impostos pela Constituição e pelas leis aos poderes constituídos, conformados pelos direitos individuais, pelos direitos sociais e pelos direitos difusos do Povo, e de como se preconiza a fruição concreta desses direitos, tudo isso dará a medida da saúde democrática do Estado.

Assim, as normas sobre a confecção do orçamento (impositivo ou meramente autorizativo) e os limites (se houver) do poder de emenda do Legislativo à proposta do Executivo; o teor do pacto federativo no seu equilíbrio entre competências administrativas e competências tributárias, ao lado da repartição vertical das receitas públicas, máxime em ambiente sócio-econômico heterogêneo; a análise do grau de justiça tributária e de equidade na distribuição do gasto público – é nesse feixe de dados que se vai perscrutar da centralização ou da desconcentração do Poder e de sua maior ou menor proximidade com o Povo dele titular e dele necessitado para a promoção do Bem Comum, que se demanda construir com liberdade, igualdade e respeito à dignidade humana.

3. O orçamento como instrumento central da atividade financeira.

3.1 Origem política.

O orçamento público tem origem política, como ferramenta de controle parlamentar sobre o Rei. Contemporaneamente, o orçamento, ou Lei de Meios, é o ato legislativo mais importante ordinariamente votado nos Parlamentos democráticos; nele se encontra a concreção das políticas públicas constitucionalizadas ou legisladas, bem como aquelas prometidas à população com base no ordenamento jurídico; no orçamento realiza-se o princípio da distribuição equitativa do gasto público[30] (simétrico ao princípio da capacidade contributiva), em suma, determina-se como se despenderão os recursos que ao Povo se requisitaram suprir ao Erário para a promoção do Bem Comum.

Assim, o orçamento serve à finalidade política de controle da Administração pelo Parlamento, desde a máxima “no taxation without representation” da inglesa Magna Charta e exigência do Bill of Rights de 1689, e depois na Declaração francesa de 1789, até os dias de hoje. É que o direito de autorizar receitas implica no poder de controlar as despesas[31] (que não devem ultrapassar aquelas) e o poder de discriminar o patrimônio público daquele do governante. Como título político, o orçamento encerra um sistemático e didático exercício de democracia: requer para a sua aprovação a composição de interesses sociais, frequentemente conflitantes, legitimamente representados; revê anualmente a condução da coisa pública, a aplicação dos fundos públicos consoante adequação da carga tributária ao seu financiamento.

Pelo prisma econômico, o orçamento para lá de mero instrumento de organização das finanças públicas, materializa decisões que ensejam ao Estado o comando da conjuntura, a redistribuição de renda e a execução de política anticíclica, bem como o combate à inflação. O gasto orientado a fomentar a demanda por produção, o volume de recursos destinados ao atendimento dos direitos sociais e o nível de investimento ou endividamento público, ou uma tributação agravada acompanhada de contenção austera de despesas, tudo isso são alternativas financeiras que o orçamento refletirá em suas rubricas, fazendo dele a pedra angular da direção da economia.

3.2 Fundamentação jurídica.

A boa técnica orçamentária abrange o planejamento, que tem um aspecto retrospectivo de exame do desempenho passado da economia (seus indicadores e capacidade de produção de receita ao Estado) e outro prospectivo de avaliação das necessidades a serem atendidas pelos serviços públicos no exercício futuro; naturalmente, busca-se atender ao princípio do equilíbrio orçamentário, ultrapassada a visão clássica do equilíbrio meramente financeiro entre receitas e despesas, mas no sentido de equilíbrio moderno e contemporâneo, macroeconômico, que um saudável programa de incentivos à produção e ao consumo pode agregar ao esforço em prol do pleno emprego e do combate à recessão, sem descurar do controle da inflação, que em espiral ascendente pode significar a derrota do planejamento, este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado[32].

A fiscalização e o controle da execução orçamentária fazem-se necessária e prioritariamente pelo Legislativo, em razão da origem política antes aludida, sem prejuízo do labor próprio da Administração decorrente do princípio da legalidade.

Assim é que a Constituição determina um controle externo do Parlamento, com o auxílio de uma Corte de Contas, e um sistema de controle interno de cada Poder (art. 70). A fiscalização de que se trata não se contenta, porém, com o exame de legalidade, mas avança sobre a legitimidade e a economicidade da execução orçamentária (dispositivo citado). A legitimidade diz com o cumprimento da finalidade da legislação financeira em que se insere o orçamento; a economicidade tem a ver com a eficiência das decisões administrativas (art. 39), pois, como já ressaltado, a atividade financeira é a atividade econômica do Estado que gerencia receitas finitas para o atendimento de necessidades infinitas.

O orçamento é, assim, o ato mediante o qual o Legislativo prevê a receita e fixa a despesa, autorizando ou determinando à Administração Pública, por certo período e em pormenor, a realização do gasto necessário à manutenção das atividades estatais.

Sua natureza jurídica é motivo de controvérsia.

Superada, porém, a velha doutrina do simples caráter formal da lei do orçamento público[33], vem a se admitir o controle jurisdicional de legitimidade do orçamento, exatamente porque a lei orçamentária traz em cifras ou verbas um feixe de políticas públicas resultado de decisões fundamentais do Estado, traduzindo, pois, normas jurídicas de observância cogente (lei material, portanto). Subjacente à doutrina do orçamento como lei formal está a ideia de que o orçamento apenas traria autorizações de gasto (orçamento autorizativo) com a finalidade de ressalvar a responsabilidade da Administração quanto ao dispêndio público.

Na medida em que evoluiu o pensamento jurídico em direção ao caráter material da lei orçamentária, cogita-se da obrigatoriedade da execução de suas rubricas de despesa (orçamento impositivo). O dever de gastar certos créditos orçamentários, especialmente os relativos a investimentos (por definição advindos de uma política pública assumida pelo Estado, seja em sua Constituição, seja em suas leis) levou MARTÍN QUERALT e outros[34] a concluírem que a Administração não está apenas autorizada “senão vinculada a gastar em sua totalidade os créditos previstos para esses investimentos”. Aliás, aduz ORÓN MORATAL[35], “se a Constituição supõe para os poderes públicos não só um limite, senão também uma vinculação positiva”, então, “impõe um poder/dever, que se manifestará igualmente na vertente dos gastos públicos para implementar as previsões constitucionais”.

Neste ponto, não se olvide a lição de GIULIANI FONROUGE[36], para quem o Executivo “não se pode apartar da sanção legislativa, porque tais rubricas podem corresponder a um plano econômico (…) e em tal caso deve executar-se”, sendo certo que, como leciona BIDART CAMPOS[37], “deve-se ligar o orçamento às políticas públicas que o Estado programa em consonância com o modelo sócio-econômico da Constituição”, porque, com CORTI[38], a “atividade orçamentária é como uma sombra, sempre presente e inevitável, de toda a atividade público-estatal”.

No direito pátrio, não por outra razão, RÉGIS FERNANDES DE OLIVEIRA[39] ensina que o orçamento, além de permitir à Administração efetuar a cobrança da Receita Pública (especialmente dos tributos, cuja finalidade, insiste-se, é prover à Despesa[40] e, por ela, implementar as políticas públicas), faz nascer “a obrigação de perseguir as finalidades ou aplicar os recursos naqueles débitos que a previu”(…); “ao lado de ser lei, é o orçamento um plano de governo, mas que deve possuir previsões efetivas de ingressos públicos e previsões reais de despesas, equilibradas com aqueles”. Com propriedade, pois, anota MARCUS ABRAHAM[41] que a doutrina mais moderna e a jurisprudência brasileira recente vêm caminhando no sentido de “reconhecer ao orçamento público o seu conteúdo material e conferir a força normativa que lhe é inerente no Estado Democrático de Direito”.

De fato, já não basta dizer-se que os recursos públicos (do povo) devem ser  consumidos na despesa pública (e não pelo governante), mas é preciso justificar a o uso do dinheiro pelo Estado nas finalidades públicas (de interesse do povo legitimamente representado na confecção da Constituição e das leis). Por isso que a principiologia orçamentária orienta-se hodiernamente a exigir a conformação material das rubricas da Lei de Meios às políticas públicas viabilizadoras dos direitos fundamentais; não são estes que devem ser limitados pelo orçamento, mas este é que deve submeter-se à satisfação daqueles.

4. Escorço histórico da atividade financeira do Estado e do orçamento.

Quer nas sociedades mais primitivas, quer na Roma Antiga, ainda que fundamentados numa solidariedade espontânea (prestavam-nos os mais aptos à caça ou à pesca ou à guerra sob a forma de contribuição in natura ou in laborem, tendo em consideração a provisão ou a defesa da comunidade, depois em pecúnia na medida de suas possibilidades), os tributos sempre foram dotados de algum nível de coerção, ainda que moral ou social, para adiante assumirem sua feição atual de determinação jurídica estatal.

Na Roma Imperial e em civilizações similares, o tributo de galardão da cidadania passou a marca da opressão, sendo exigido dos povos submetidos ao jugo militar, quer como espoliações, quer como trabalho escravo ou capitações (por cabeça, tributo sobre a existência humana – “tributum capitis”, depois “capitatio humana”[42]). No Feudalismo medieval o tributo se confundia com prestações de ordem patrimonial, próprias do regime de vassalagem, como as enfiteuses, os dotes, as quotas de produção agropastoril. Nos Tempos Modernos, o tributo adquiriu o color de direitos realengos, como as prestações devidas em função de autorizações ou alvarás régios para atividades, profissões, etc., e as pilhagens dos corsos, convivendo com toda sorte de privilégios em favor da nobreza e do clero, que levaram às revoltas liberais dos séculos XVIII e XIX[43].

A partir do Liberalismo e consequente democratização do Estado, que então se instituiatravés de uma Declaração de Direitos ou uma Carta Constitucional ou Lei Fundamental, o dever de prestar tributo decorre da Cidadania, estabelecido com base na Igualdade e medido pela riqueza ou capacidade econômica do contribuinte; o tributo é concebido como intervenção estatal na economia privada e conformado por princípios da nova ordem que passa a reger as relações do povo com o Estado.

É importante realçar que a ideia de contenção do poder soberano de decretar tributos sempre esteve presente na História. Do adágio interpretativo romano “in dubio contra fiscum”, da interpretação restritiva da Idade Média, do “no taxation without representation” da Magna Charta bretã de 1215, da declaração das Cortes de Coimbra (1621), das inglesas Petition of Rights (1629) e Bill of Rights (1689), até diversas revoluções ou revoltas políticas ulteriores, em maior ou menor grau, atribuíveis ao exagero das exigências fiscais que desrespeitavam a dignidade e o sentimento de justiça dos obrigados ao seu pagamento, como a Boston Tea Party de 1773 (Independência Norte-Americana), a Inconfidência Mineira brasileira e a Tomada da Bastilha na França (ambas de 1789), sendo que da última adveio a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que dispunha no seu artigo 13 que as contribuições indispensáveis à manutenção da Administração Pública seriam “igualmente repartidas entre todos os cidadãos, em razão de suas aptidões” – a tudo seguiu-se a luta cidadã em busca de dignidade humana (e fiscal), hoje traduzida na garantia de recursos para o financiamento das políticas públicas[44] que devem materializar ações estatais concertadas visando ao atendimento das demandas sociais, conquistadas como direitos de segunda geração (Bobbio), os direitos sociais originariamente positivados na Constituição de Weimar (1919) e na Constituição do México (1917).

Assim como a intervenção do Estado na economia, a ação social do Estado impôs-se como veículo de promoção do bem-estar. Foi necessário empreender-se uma verdadeira revolução financeira para acomodar os desafios que as novas demandas públicas apresentaram. A descentralização dos serviços públicos correspondeu à criação de inúmeras contribuições parafiscais, ensejando o custeio de ação capilarizada de fomento econômico e de seguridade social, por exemplo, o mesmo se dando com a necessidade de fontes de custeio para regulamentação e fiscalização de atividades profissionais de interesse público. O debate entre Morselli e Mérigot a propósito da natureza jurídica das contribuições parafiscais[45] indica bem o imbricamento da questão financeira com a mutação do Estado Liberal em Estado de Bem-Estar.

Por outro lado, a tributação tradicional levada a efeito através dos impostos clássicos passou a receber o influxo de uma igualdade material que tornaria obsoleta a igualdade formal, assim como o orçamento público passaria a ser considerado plena lei material[46], não mera lei formal. A progressividade tributária, derivada do princípio da capacidade contributiva passou a ser instrumento de realização da igualdade não mais como medida contratualista de maior tributação a quem mais usasse do Estado, mas como vetor institucional ou estrutural de uma carga tributária que realizasse a igualdade relativa de sacrifícios num Estado em busca de recursos que financiassem a igualdade de oportunidade; maior contribuição correspondente a maior força econômica; melhor serviço público em favor da melhor distribuição dos frutos do progresso – tudo a gerar o círculo virtuoso do desenvolvimento econômico-social.

Num tal contexto, a extrafiscalidade tributária corresponderia a outro salto qualitativo[47] de valorização das Finanças Públicas; não mais uma tributação protecionista mercantilista, mas agora de cunho regulatório em favor da promoção de políticas públicas consubstanciais à intervenção estatal na ordem econômica e social. No direito pátrio o fenômeno foi bem percebido por Alfredo Augusto Becker[48], que entrevia no potencial extrafiscal dos tributos o caminho para a transformação do Estado num novo Ser Social.

Nota-se, portanto, um claro movimento de ultrapassagem de um Estado mínimo absenteísta que fez florescer o Estado comprometido com a intervenção promotora do bem-estar social, ao qual as Finanças Públicas não estiveram alheias nem negaram suporte[49]. De finanças neutras a finanças funcionais, esta foi a face financeira do desenvolvimento econômico e social promovido a partir do século XX, cujo modelo tende a se aperfeiçoar malgrado os influxos negativos do neoliberalismo.

A pretexto de teoricamente reservar ao Estado uma função regulatória na ordem econômica, o neoliberalismo pretende mesmo é um retorno ao capitalismo liberal através da redução da expressão dos direitos sociais e desregulação pragmática da economia cumulada com a inoperância de agências ditas reguladoras, como se viu na crise financeira global iniciada em 2008. Para combate à recessão instaurada, ao Estado pediu-se socorro financeiro com enorme expansão do gasto público. Na perspectiva deste ensaio, a crise serviu de alerta à violência perpetrada contra os direitos sociais, que demandam prestações materiais estatais ordenadas por políticas públicas, especialmente considerando-se a doutrina da proibição de retrocesso.

Nesse movimento pendular, a Constituição brasileira de 1988 determina a alocação de verbas[50] destinadas à satisfação das políticas públicas por ela institucionalizadas[51]. O parágrafo único do art. 148 estabelece a vinculação dos recursos provenientes do empréstimo compulsório “à despesa que fundamentou a sua instituição”, destacando-se o “investimento público de caráter urgente e relevante interesse nacional”. Lê-se no art. 149 que as contribuições[52] são instrumento de atuação da União nas áreas social, econômica e profissional, destacando-se as contribuições à seguridade social (art. 195). A Carta dispõe ser a saúde, inserida no conceito de seguridade social, um “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas” (art. 196) integradas por ações e serviços de saúde (art. 197) organizadas em sistema único de saúde e financiadas entre outros meios pelas citadas contribuições à seguridade social (arts. 198, § 1º, c/c 195) e por recursos federativos assegurados (art. 198, § 2º, c/c os arts. 155 a 159)[53]. Quanto à educação, a Constituição prima em declará-la “direito de todos e dever do Estado[54] e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”, garantindo a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais” (inciso IV) e determinando a aplicação pela União de “nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos” (art. 212); ademais, a “distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação” (§ 3º); os §§ 4º a 6º complementam esses comandos indicando as “contribuições sociais e outros recursos orçamentários” como fontes seguras de financiamento, sobretudo para o ensino fundamental; a lei do plano nacional de educação fixará “meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto” (art. 214, VI).

Esta evolução do quadro axiológico-normativo deve ser levada em consideração na interpretação teleológica do conceito de tributo, mais do que nunca um instrumento de financiamento, através do orçamento público[55], das ações estatais comprometidas com o bem-estar, que assegure a dignidade da pessoa humana, não se podendo furtar o Estado a conceber e implementar políticas públicas conducentes a esse desiderato. A tributação deve responder à contemporânea concepção do Direito Financeiro, que exige uma conexão transparente entre tributação e gasto público, consoante o momento histórico, que já é hoje pós neoliberal em que o Estado deve usar as finanças públicas como instrumento anticíclico do redivivo keynesianismo.

A vertente orçamentária do problema exige uma releitura dos princípios.

4.1 Principiologia orçamentária.

A doutrina tradicionalmente[56] divide os princípios orçamentários em materiais e formais, sendo os primeiros os da anualidade orçamentária e do equilíbrio orçamentário, os quais dizem respeito à natureza e finalidade do orçamento.

O princípio da anualidade orçamentária decorre da ideia democrática de controle político periódico das finanças públicas, que, aliás, está em simetria com a prestação de contas, a verificação da boa, fiel, legítima, execução do orçamento. O princípio determina que a cada ano se discuta e aprove um novo orçamento (Constituição, art. 165, III); ao mesmo tempo, preconiza-se a auditoria anual das contas públicas (arts. 70 a 75 c/c art. 84, XXIV), pois cabe ao Congresso Nacional julgar as contas do Chefe do Poder Executivo e à Câmara dos Deputados tomar-lhe as contas sempre que não as preste no prazo constitucional (art. 49, IX; art. 51, II).

Contemporaneamente, a anualidade orçamentária imbrica-se com o princípio do planejamento “determinante para o setor público e indicativo para o setor privado[57]”; neste contexto insere-se a exigência constitucional da elaboração também de um plano plurianual[58] que “estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”, o qual tem periodicidade quadrienal, correspondendo às metas do Chefe do Poder Executivo em função do respectivo mandato (art. 35, § 2º, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Da mesma forma, requer a Carta Magna a edição anual de uma lei de diretrizes orçamentárias (art. 165, II c/c art. 35, § 2º, II do ADCT), que “compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento”.

Ora, planejamento é algo juridicamente exigido para que possam ter curso as políticas públicas do Estado, especialmente aquelas que envolvem “programas de duração continuada”, como soem ser as referentes à saúde, à educação, à previdência social, renda mínima, transportes e infraestrutura de que tanto se ressentem a afirmação da soberania nacional e o desenvolvimento sócio-econômico do País. Nesse sentido, o princípio da anualidade, não apenas condicionante temporal da atividade financeira, se sobressai no cenário orçamentário como uma determinação de cuidado com a coisa pública, em busca de legitimidade, transparência e responsabilidade.

O princípio do equilíbrio orçamentário, na sua perspectiva clássica de equilíbrio financeiro (identidade entre receita e despesa), correspondente às finanças neutras do “laisser faire, laisser passer”, inadmitia o déficit orçamentário (incompatível com um Estado Polícia, pretensamente ausente da vida social e econômica); na visão atual, trata-se de equilíbrio econômico, sendo o orçamento uma peça de estruturação e controle da economia através do trato das finanças públicas, entendidas estas como finanças funcionais, aptas à intervenção[59] do Estado nos campos social econômico, que aceita déficits financeiros[60] em nome da paz social e do equilíbrio macroeconômico, especialmente em quadras de estagnação ou depressão – como nos anos 1930[61] e 2008 e seguintes). Tal princípio se encontra adotado no direito brasileiro por um sistema de normas, a começar da Constituição (art. 166, § 2º, II; art. 166, § 3º, II) e que avança pela lei de normas gerais de direito financeiro (art. 43 e § 1º, I, da Lei 4320/64) e pela denominada lei de responsabilidade fiscal (Lei Complementar 101/2000 (art. 1º, § 1º; art. 21; art. 31 e outros), integrando um pacto pela estabilidade orçamentária em favor do perene desenvolvimento nacional.

É nestas circunstâncias que se alude ao princípio do gasto público equitativo. Princípio geral do direito financeiro, a repartição equitativa do gasto público encontra-se expressamente positivada em Constituições contemporâneas, como a Constituição Espanhola: “Art. 31.1 – Todos contribuirão ao custeio dos gastos públicos de acordo com sua capacidade econômica (…) mediante um sistema tributário justo”. 31.2 – O gasto público realizará uma dotação equitativa dos recursos públicos e sua programação e execução responderão aos critérios de eficiência e economia”; a Constituição portuguesa (VII revisão constitucional, 2005): “Art. 81º.
Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: a) Promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas, no quadro de uma estratégia de desenvolvimento sustentável; (…) “Art. 103º. 1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”.

Da mesma forma, a Constituição argentina dispõe desde sua promulgação em 1853/60 que os “gastos da Nação” serão providos, entre outras fontes, por “contribuições que equitativa e proporcionalmente à população imponha o Congresso” (art. 4º). E, na revisão constitucional de 1994, declarou-se que a distribuição dos recursos nacionais “será equitativa, solidária e dará prioridade a alcançar um grau equivalente de desenvolvimento, qualidade de vida e igualdade de oportunidades em todo território nacional” (art. 75, nº 2). A Constituição italiana (de 1947) determina em seu artigo 53 que “todos estão obrigados a contribuir para os gastos públicos em razão de sua capacidade contributiva”, estabelecendo assim uma “clara correlação[62] entre gasto público e contribuição do indivíduo”.

A Constituição brasileira agasalha idêntica principiologia em harmônica conjugação do objetivo fundamental de construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º) com a determinação de graduação da carga tributária consoante a capacidade econômica[63] da cidadania (art. 145, § 1º). Ademais, prevê que a Administração Pública obedeça ao princípio da eficiência e da moralidade, entre outros (art. 37).

Significa dizer que a repartição equitativa do gasto público se exprime por uma vertente tributária, relativa à captação de Receita, e outra de natureza orçamentária, atinente à distribuição da Despesa.

Pelo ângulo da tributação, o trato equitativo dos recursos públicos deve obedecer ao princípio fundamental da capacidade contributiva (que em essência igualdade é[64]), quer na sua dimensão de potencial requisitório, quer no seu aspecto distributivo, a justificar a um só tempo o necessário emprego da progressividade e da seletividade fiscais; ademais, a tributação completa sua conformação como processo financeiro justo na medida em que serve a propósitos de desenvolvimento sócio-econômico através da progressividade e da seletividade extrafiscais como instrumentos de implementação de políticas públicas preconizadas constitucionalmente ou acordes com os valores protegidos pela ordem jurídica.

Pelo prisma orçamentário, a citada repartição equitativa do gasto público exige eficiência na gestão dos recursos financeiros arrecadados pelo Estado; desta depende a intensidade da tributação e a qualidade do atendimento às políticas públicas definidas através das dotações orçamentárias. Políticas públicas eficientes podem poupar recursos, determinando a redução da carga tributária ou reduzindo as pressões pelo respectivo aumento.

Equilíbrio orçamentário, portanto, é princípio que hoje vai muito além de uma preocupação aritmética ou projeções financeiras, significando a contenção do poder de tributar em coordenação[65] com a capacidade contributiva da sociedade em busca de um gasto público responsável e saudável na medida em que catalisa, via orçamento, a carga tributária em favor do adequado financiamento de políticas públicas que retornem em serviços públicos de qualidade o sacrifício fiscal em prol do Bem Comum.

Não menos importantes, os chamados princípios orçamentários formais têm a ver com a formulação ou apresentação do orçamento, que, já se disse, concretiza as políticas públicas através das quais se dá ação administrativa do Estado.

O princípio da unidade determina que a aprovação do orçamento se dê através da edição de uma única lei, para facilitar seu entendimento e devido controle (CF, art. 165 c/c art. 2º da Lei 4320). Este princípio se encontra atualizado na Constituição (art. 165, § 5º), que determina que integrem a lei orçamentária anual, além do orçamento fiscal referente aos Poderes da União, “seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público”, o “orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto”, e “o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público”. Falar-se-ia, então, de unicidade orçamentária, a revelar um novo matiz estrutural da unidade do orçamento.

As disposições acima comandam a apresentação de um projeto e a aprovação de um orçamento condizente com a complexidade das finanças contemporâneas, sintonizada com o princípio da universalidade orçamentária (a seguir), pois não se pode deixar de considerar a conexão do continente com o conteúdo. Como a atividade financeira depende em última análise de um só Erário – ainda que consideradas as vinculações de certos recursos autárquicos e a personalidade própria e autonomia financeira das empresas estatais -, impõe-se que a lei orçamentária do Estado enseje a pesquisa e identificação adequada do campo de atuação das finanças públicas.

O princípio da universalidade exige que o orçamento abranja a totalidade das finanças públicas, isto é, todos os Poderes, seus fundos, órgãos e entidades vinculadas, inclusive os investimentos das empresas estatais e a seguridade social em toda a sua extensão (Constituição, art. 165, § 5º, I a III, c/c arts. 2º, 3º e 4º da Lei nº 4320/64); de sorte que, tomando-se o orçamento, tem-se acesso à globalidade da vida financeira do Estado. Numa outra vertente, há que se cogitar de uma extensão do conteúdo do princípio em questão, pois se as finanças públicas são nacionais, malgrado o caráter federal de alguns Estados como o Brasil, as finanças estaduais e municipais remetem-se, por exemplo, a limites de endividamento estabelecidos pelo Senado da República (art. 52, VI, VII e IX), sobretudo no plano externo, em que a União é chamada a garantir os compromissos assumidos pelos entes locais. A renegociação da dívida pública de Estados e Municípios com a União nas décadas de 1990-2000 exemplifica o particular. Não por coincidência, editou-se a lei de responsabilidade fiscal no ano de 2001, detalhando medidas de eficácia imediata contra desvios nas finanças locais que possam comprometer a saúde financeira da Federação (arts. 21, 23, 31 § 2º, entre outros da Lei Complementar nº 101/2000).

O princípio da não vinculação da receita, no direito pátrio vigente[66] restrito aos impostos[67] (CF, art. 167, IV), deriva do princípio contábil da unidade de caixa[68] ou unidade de tesouraria (art. 56 da Lei nº 4320/64) e tem por fim ensejar à Administração financeira realizar as despesas à medida em que se auferem as receitas, venham de onde provierem, priorizando os gastos mais relevantes ou urgentes em função das circunstâncias, sem as restrições operacionais que as verbasvinculadas ou carimbadas a certo tipo de tarefa podem trazer à implementação do orçamento, pois os recursos são escassos e nem sempre disponíveis a tempo de atender todas as necessidades públicas, infinitas por definição.

Esse princípio dá flexibilidade à gestão, mas também dota de preeminência o Administrador face ao Legislador, pois as decisões de gasto revestem-se de poder discricionário. Daí que a própria Constituição traz ou admite vinculações, de modo a garantir a permanência de suas diretrizes ou políticas públicas fundamentais (art. 148, parágrafo único, arts. 157 a 159, e as exceções ao final do art. 167, IV, por exemplo). Outras vinculações de recursos afirmariam a proeminência da vontade legislativa sobre a vontade administrativa, limitando sua ordinária discricionariedade de gestão. A natureza jurídica do orçamento e o seu caráter autorizativo ou impositivo entram em questão. Percebe-se então claramente a conexão do orçamento com a separação de Poderes, que se querem independentes e harmônicos (art. 2º da Constituição)[69].

O princípio da especificação ou especialização da despesa determina o detalhamento das rubricas ou dotações do gasto público. É que mais importante do que estabelecer um quantum ou limite para os dispêndios é saber como, em quê, as verbas públicas serão consumidas; só assim se positivará um caminho a ser trilhado pelos gestores e consequentemente o respectivo controle o que se coaduna, ademais, com a ideia de orçamento programa (Lei 4320, art. 2º; arts. 25 e 26), um orçamento que materializa planejamento e compromisso com a seriedade no trato das finanças públicas. Hodiernamente, é necessário aprofundar a extensão deste princípio, em razão de uma fortalecida principiologia de clareza e transparência[70] das finanças públicas a qual se projeta evidentemente sobre o orçamento, cuja justificação aberta importa em participação cidadã de um lado e controle jurídico de outro.

O princípio da exclusividade, ao exigir que o orçamento não contenha dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa (art. 165, § 8º), veda as chamadas caudas orçamentárias, que marcaram negativamente orçamentos no Brasil e alhures[71]. Aqui pretendeu-se por primeiro afastar-se o problema no bojo do Ato Adicional de 1926[72]. Não obstante, o País tem produzido outro fenômeno, que são as emendas parlamentares individuais[73], que vêm servindo à violação do princípio da exclusividade orçamentária. Mais sofisticadas que as rabiolas da República Velha, não mais nomeiam servidores ou criam cartórios, nem dão nome a praças que mandam construir etc., mas, como dantes, as emendas parlamentares individuais têm trazido problemas de inobservância do princípio equilíbrio orçamentário, vertente normativa da responsabilidade fiscal. Mesmo sem aprovação de Emenda Constitucional (casuísmo extremo), introduziu-se na Lei Orçamentária de 2014 (art. 52) a determinação de ser “obrigatória a execução orçamentária e financeira, ‘de forma equitativa’, da programação incluída por emendas individuais em lei orçamentária”. Mas a Constituição não se refere a emendas parlamentares individuais (nem caberia). Ora, todo orçamento, por definição planejado, refletido e discutido com olhos postos no bem comum, atendendo aos princípios da seriedade, transparência e moralidade, entende-se naturalmente impositivo. E projetos ou programas de trabalho, políticas públicas, devem ser pensados antes da aprovação do orçamento, objetiva e racionalmente, e propostos seja pelos Poderes, seja pelas instituições legitimadas constitucionalmente[74].

Outros princípios se podem agregar aos acima expostos, como o princípio da clareza textual e contextual das rubricas ou programas orçamentários, a exigir a não ambiguidade das mesmas, assim como a fidelidade das estimativas de receitas e despesas; numa linguagem contemporânea, transparência: em suma, a expressão vernacular das dotações orçamentárias[75] não deve permitir a dissimulação e o desvio de verbas para fins outros que não aqueles queridos pelo Legislador, que por sua vez devem ser consentâneos ao Bem Comum e às políticas públicas que pretendem concretizar; nem se deve aceitar o inflar da Receita[76] para cobrir Despesa sem lastro na capacidade contributiva da população. E as renúncias de receitas (como as isenções) devem ser quantificadas para que se entendam deduzidas da estimativa daquelas.

A economicidade, característica da atividade financeira como um todo, é um princípio dirigido a toda a Administração Pública, implicando na otimização dos recursos públicos, isto é, a aplicação do mínimo de fundos na satisfação do máximo de necessidades públicas; a economicidade se insinua no planejamento e na redação, assim como se apresentará na implementação e no controle da execução, do orçamento e consequentemente das políticas públicas nele materializadas.

Vê-se assim que a principiologia orçamentária procura contemporaneamente explicitar aplicações particulares de um princípio geral do direito financeiro, já referido – a repartição equitativa do gasto público – em torno do qual deve centrar-se o trato das finanças públicas, isto é, a atividade financeira e a execução orçamentária financiada pelos tributos tomados à capacidade contributiva do povo, a quem pertence o poder e cujos direitos humanos, fundamentais (individuais e sociais), impende atender.

4.2 Os direitos humanos e o orçamento.

Do berço comum dos direitos naturais provêm os assim designados direitos humanos e direitos fundamentais.

Correspectivos à Humanidade, seja em razão de pertença à Natureza, de raízes gregas[77], seja em decorrência de criação divina[78], os direitos naturais proclamados e positivados na Declaração da Independência norte-americana de 1776[79] e na Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[80] viriam a adquirir a dimensão de direitos humanos ao influxo da ética racional de Kant[81], objeto de construção histórica, ulteriormente consagrados no direito internacional sobretudo a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948) e recebidos no plano constitucional interno dos países como direitos fundamentais dignos de tutela eficaz, como por exemplo preconizado no § 1º do artigo 5º da Constituição brasileira e no artigo 2º da Constituição portuguesa[82].

Está-se a tratar não só dos direitos da igualdade e da liberdade, mas também dos que, mercê do atual estágio civilizatório, são verdadeiros postulados daqueles. De fato, não se concebe que, sem a fruição de saúde, moradia, educação e outros direitos sociais, possa dar-se o gozo dos direitos individuais, com o desenvolvimento físico, psíquico, intelectual, cultural e moral do ser humano, dotado da respectiva dignidade humana, desabrochada e respeitada em toda a sua extensão.

Como cabe ao Estado a implementação do Estado de Direito e a atividade financeira é um meio para esse fim (que abrange desenganadamente a promoção dos direitos humanos, fundamentais), nota-se um “vínculo indissolúvel entre atividade financeira pública e o exercício dos direitos fundamentais[83]”. Se a atividade financeira é um instrumento para a realização do Estado constitucional de Direito, isso significa que o é, também, para conferir efetividade aos direitos fundamentais[84]”. Em outras palavras, a atividade financeira e o orçamento não subordinam a si os direitos humanos, fundamentais; é a satisfação destes que justifica, ilumina, impulsiona e condiciona aqueles institutos do direito financeiro.

Oscar Corrêa[85], ademais de rebuscar na História o caráter imemorial da luta do homem pelo reconhecimento de seus direitos, acentua que “a oposição autoridade-liberdade oferece quadro sugestivo, na sucessão intérmina do predomínio de uma ou outra”, para concluir que

“A efetivação desses direitos humanos tem sido, contudo, o grande desafio da Humanidade, porque, no plano nacional, as disputas internas, com a intensidade dos ódios que propicia, têm constituído sempre obstáculo intransponível a essa efetivação. (…) Para a solução tem contribuído o Judiciário, com a ampliação da malha protetora desses direitos, assegurando-lhes arcabouço institucional amplo e sólido para enfrentar os possíveis e prováveis desafios do terceiro milênio[86]”.

Mas não é apenas o conflito liberdade-autoridade que se interpõe entre a demanda social e a garantia dos direitos fundamentais. Há que se ter em conta também que o gasto social depende da tributação da riqueza privada, foco de outra luta histórica em torno da razoabilidade da exação estatal em cotejo com a capacidade contributiva e a escorreita despesa para atendimento às necessidades do povo.

São os mais abastados que podem e devem mais contribuir para que o Erário possa realizar a grave missão de distribuir[87] os recursos públicos em favor dos menos aquinhoados com vistas a garantir-lhes bases reais de competição e evolução como desde sempre intuído pelo ideal grego e tomista da igualdade relativa. A consecução deste desiderato requer crença na democracia e na fraternidade, descortino[88] e solidariedade, e responsabilidade juspolítica.

Nesse contexto, em que muita vez a autoridade se alia ao poder econômico resistente à fiscalidade estatal viabilizadora do serviço público de atenção aos direitos fundamentais, a manifestação do Ministro Celso de Mello nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45 é paradigmática da posição do STF quanto à garantia constitucional reconhecida aos direitos sociais:

“É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata[89] efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (…)

notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade[90]”.

A democracia fiscal é a prova real da democracia política; o orçamento tem aqui um papel fundamental.

5. Controle judicial do orçamento e do gasto público.

É tempo de pugnar por um sempre mais eficaz controle jurídico do orçamento e do gasto público, na esteira do que o STF e o STJ preconizam, pois tal é preciso fazer em nome da moralidade e para o bem das finanças públicas, cuja gestão no Brasil é recorrentemente apontada como entrave ao pleno desenvolvimento do País; a começar pelo baixo nível da educação e da saúde públicas, que, a par da indignidade, impactam negativamente a inclusão, a inserção e a competitividade nacionais. Parece claro que sem democracia financeira não há democracia política nem democracia econômica.

Ora, se o Estado é o principal “promotor do bem-estar geral”, presidindo a tensão entre a garantia da dignidade humana e o “limite do financeiramente possível”, em que os recursos públicos são “mais reduzidos onde maior é a sua necessidade[91]”, então, diante do vilipêndio à vida, à saúde, à educação, quer pela Lei de Meios, quer pela Administração, impõe-se ao Poder Judiciário atender ao reclamo pela prestação estatal que satisfaça o fundamental; o remanejamento de verbas públicas[92] ou a abertura de crédito suplementar[93] (ou especial[94], no caso de, por absurda omissão, inexistir dotação específica), observado o devido processo legal, poderá ser a consequência orçamentária, ex vi constitucionis, reparadora de algum desvio governamental que não se sustenta diante dos bens maiores tutelados pela ordem democrática.

De fato, o STF evoluiu em sua Jurisprudência para não só admitir o controle concentrado[95] de constitucionalidade do orçamento, mas passou a secundar decisões de tribunais locais que determinam a tutela de direitos sociais, ainda quando o orçamento traga insuficiência de dotação orçamentária[96] respectiva, pois o orçamento não é um mero plano de governo ou ato administrativo de organização do governo, mas, muito mais, é uma lei que deve respeitar o programa de tutela constitucional e legal dos direitos fundamentais. É que “a análise orçamental é um topos de argumentação disponível ao Judiciário na sindicação dos direitos sociais (…) para [que] se aprecie o fundamento estatal para a não satisfação do direito fundamental social[97]”.

No julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada nº 175[98], em 2010, o STF garantiu o fornecimento pelo Sistema Nacional de Saúde (SUS) de medicamento registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, afastando alegado risco de grave lesão à economia; depois de proclamar o postulado da proteção aos direitos fundamentais e a proibição da proteção insuficiente (fls. 78), pela dependência de certos daqueles direitos de providências e prestações estatais, como soe acontecer com os direitos sociais (fls. 79-80), afirmou a Suprema Corte que, além de um valor apto a garantir a liberdade dos cidadãos, em relação aos direitos sociais (como é o caso do direito à saúde) deve o Estado dispor de valores variáveis em função da necessidade de cada cidadão.

Ao analisar o Recurso Extraordinário (RE) nº 581.352, o STF, em 2014, censurou a deficiente atenção às gestantes em maternidades estaduais, afirmando que tal desrespeito provocado por inércia estatal transgride a Constituição; e afastou a reserva do possível no caso, reconhecendo sua inaplicabilidade sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial, reiterando precedentes em relação a tais posicionamentos[99].

Ao julgar em 30/06/2016 a AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.468-DF[100], o Plenário do STF reafirmou a sindicabilidade da adequação das normas orçamentárias à Constituição (cf. nota 91 supra), para constatar que “…4. O ‘controle material’ de espécies legislativas orçamentárias corresponde a uma tendência recentemente intensificada na jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF)”. E, nessa ordem de considerações, verificando, por exemplo, o desrespeito ao orçamento mínimo constitucional aplicado em ações e serviços de saúde, a Corte não se excusa de condenar[101] o Poder Público “a acrescentar no orçamento destinado à saúde do exercício financeiro subsequente os valores corrigidos monetariamente, com juros moratórios (…)”, sonegados ao orçamento anteriormente; e determinar ao mesmo “que não inclua nas leis orçamentárias na forma de ações e serviços em saúde os pagamentos de aposentadorias e pensões, inclusive dos servidores da saúde, e os gastos com assistência à saúde que não atenda ao princípio de acesso universal…”.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é tranquila no sentido da possibilidade do controle judicial de políticas públicas e da eventual insuficiência orçamentária respectiva, como tem abonado o bloqueio de dinheiro em contas públicas em garantia das determinações judiciais ao Estado para que entregue as prestações materiais exigidas para efetivação dos direitos sociais; mais, o STJ entende que, sem prejuízo de considerar o direito social como um direito difuso[102] suscetível de ser demandado pelo Ministério Público em ação civil pública, o direito pessoal respectivo pode ser pleiteado em juízo em ações individuais.

Assim, no REsp nº 909.752 (2006/0270886-3)[103], tratando de causa individual e que se pedia o custeio de medicamento, a Corte referendou o bloqueio de valores em contas públicas, como medida cautelar possível à luz do art. 461, § 5º, do Código de Processo Civil (CPC), sendo “lícito ao magistrado determinar o bloqueio de valores em contas públicas para garantir o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde”, fundamentando-se na circunstância de que a Constituição “excepcionou da exigência do precatório os créditos de natureza alimentícia, entre os quais se incluem aqueles relacionados à garantia da manutenção da vida, como os decorrentes do fornecimento de medicamentos pelo Estado (…), permitida, inclusive, a mitigação da impenhorabilidade dos bens públicos”;  e no REsp nº 794.253 (2005/0183246-0)[104] o STJ lembrou que “em diversas oportunidades, já se manifestou no sentido de reconhecer a licitude do bloqueio de valores em contas públicas com o fito de assegurar o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, sem que se configure ofensa ao art. 461 e seus incisos do CPC”.

Em relação ao direito social à educação, o STF reafirmou em 2011, no ARE 639.337 AgR[105], os fundamentos empregados no julgamento do RE 410.715 AgR[106], de  2005,  e no RE 595595 AgR[107], de 2009, no sentido de, sendo a educação infantil direito fundamental de toda criança, “não admite, em seu processo de concretização, avaliações meramente discricionárias da Administração Pública”. No primeiro caso, placitou  sentença que obrigara o Município a matricular crianças em escolas públicas próximas à sua residência ou endereço de trabalho dos seus responsáveis; no precedente anterior, garantiu a matrícula de todas as crianças de zero a seis anos em escolas municipais; e no terceiro caso confirmou a exigibilidade de vaga no ensino fundamental e educação infantil para as crianças carentes do Município. Entendeu o STF que, nessa matéria, “as opções dos Municípios não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social”. Não por outra razão, o eminente Ministro Presidente Joaquim Barbosa[108], em aula magna proferida na Universidade de Brasília em 2013, se pronunciou no sentido de ser a educação a mais importante “prestação que o cidadão, tem direito a reivindicar do Estado”, certo que, “sem acesso a educação, a pessoa fica destituída dos meios de dar sua contribuição qualitativa para a sociedade”.

Não é diversa a jurisprudência do STJ, bastando lembrar o REsp nº 1.185.474 (2010/0048628-4)[109], em que o Tribunal garantiu o direito subjetivo de acesso à creche aos menores de zero a seis anos, entendendo que decisões políticas circunstanciais (esclareça-se, como as eventualmente tomadas no processo orçamentário) não se podem sobrepor à efetivação dos direitos fundamentais sociais, objeto de políticas públicas constitucionais, sendo eles eminentemente prestacionais, que sempre abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos, máxime quando comparados a rubricas generosas para custeio de “festividades ou propagandas governamentais”.  Nesta bem lançada decisão, o STJ atribui a sempre invocada escassez de recursos (“sinônimo de desigualdade”) a um processo de escolha, de uma decisão que pode retirar (ausência de) dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade, em favor daquela citada despesa, razão pela qual a chamada reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos direitos fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preteri-los em suas escolhas. Esta fundamentação foi adotada às inteiras no julgamento do REsp nº 1.068.731 (2008/0137930-3)[110], assentando, verbis, que

“a escusa da ‘limitação de recursos orçamentários’ frequentemente não passa de biombo para esconder a opção do administrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes”.

Proveitoso ainda analisar um caso de impacto levado à consideração do STF: na Suspensão de Tutela Antecipada-STA nº 405, o Distrito Federal objetivou suspender os efeitos da decisão de Vara da Infância e da Juventude que, em ação civil pública movida pelo Ministério Público-MP[111], determinou a implantação de novos vinte e três Conselhos Tutelares, na forma da lei, e mais um Conselho nas cinco regiões administrativas com mais de duzentos mil habitantes, na forma de Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), mandou ao DF: disponibilizar espaços físicos adequados; adequar o orçamento de 2009, com recursos necessários; c- nomear e dar posse aos Conselheiros Tutelares e efetivar o funcionamento dos plantões previstos em lei; e arbitrou multa diária devida pelas autoridades que indicou, em caso de descumprimento da decisão. Alegou o Réu ao STF indevida interferência do Judiciário nas atribuições discricionárias do Executivo, ao adentrar o mérito da condução de políticas públicas. No curso do incidente, informou que subsequentemente à decisão judicial foi editada lei criando trinta e três novos Conselhos, remanescendo litigiosa somente a determinação de abertura de Conselhos adicionais. Não obstante, o Presidente[112] do STF indeferiu a suspensão da tutela antecipada por não verificar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, porque já atendida a maior parte da decisão atacada, e por não ter o DF trazido qualquer elemento concreto quanto a suposta lesão à economia pública pela colocação em funcionamento de mais cinco Conselhos, mas apenas meras alegações relativas a todo o conteúdo da antecipação inicialmente concedida. Também não viu dano à ordem administrativa, pois, como se depreendeu de manifestações oficiais nos autos, desde o exercício anterior o DF já sabia da possibilidade de condenação, podendo, perfeitamente, adequar o orçamento de 2010 à viabilização de apenas cinco novos conselhos tutelares. Foi rejeitada a alegação não comprovada de risco à ordem financeira. Este caso concretiza a progressiva implementação do direito fundamental em questão, admitindo-se que o Judiciário determine o cumprimento de política pública normatizada, inclusive pela disponibilização orçamentária de recursos materiais adequados e necessários. 
 

Finalmente, colige-se outra decisão do Ministro Presidente[113] do STF (STA nº 421-PE): foi caso em que se determinou a Município que, em 72 horas, fornecesse transporte adequado para ida e retorno à capital, distante 252 km, e pagamento de diária no patamar de R$ 70,00 aos dois Requerentes (menor portador de doença motora e sua mãe), e não os R$ 8,40 pagos conforme tabela de Tratamento Fora do Domicílio-TFD. Mesmo havendo o Tribunal estadual reduzido sua expressão a R$ 30,00, alegou o Réu que cumpria a citada tabela TFD; que o expediente de pagamento adotado pela decisão impugnada implicaria violação ao sistema de precatórios (artigo 100 da CF/88); que havia a possibilidade do efeito multiplicador da decisão, tendo em vista que todos os duzentos e vinte e três pacientes beneficiados pelo TFD poderiam ajuizar ações pleiteando o aumento das diárias, a risco de se inviabilizar a manutenção do programa; e pediu, ao fim, a suspensão do acórdão do Tribunal local para impedir-se o aumento do valor das diárias concedido. Em sua decisão, o Presidente do STF destacou que, embora a atuação do Judiciário seja fundamental para o exercício efetivo da cidadania e para a realização do direito à saúde, as decisões judiciais causam tensão entre os elaboradores e executores das políticas públicas, compelidos a garantir prestações de direitos sociais, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área da saúde e além das possibilidades orçamentárias, havendo a esse propósito convocado audiência pública[114]. Não haveria falar em violação ao art. 100 da Constituição, pois se tratou de medida acauteladora do processo, não se discutindo o pagamento de indenização ou créditos devidos pelo Poder Público, mas, sim, o valor da diária nos dias em que o menor precisava se deslocar à capital distante; e nem se requereu efeito retroativo. Afirmou a Presidência que não procedia a alegação de que a decisão serviria de precedente negativo ao Poder Público, com possibilidade de ensejar o denominado efeito multiplicador, pois a análise de decisões dessa natureza se faz caso a caso, considerando-se todos os elementos normativos e fáticos da questão jurídica, não sendo de vislumbrar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas a ensejar a adoção da medida excepcional de suspensão de tutela antecipada, que indeferiu. Nota-se que a insuficiência orçamentária foi suprida pela determinação de cumprimento da política pública constitucional de proteção da saúde, implicitamente ordenando-se a suplementação de verba para atender adequadamente a pessoa doente; e a intervenção judicial garantiu o direito fundamental contra o interesse financeiro da Administração, pondo cobro à subordinação da dignidade humana à incúria orçamentária que renega a própria política pública a cumprir.

Em vários dos casos acima apresenta-se como parte o MP, instituição “essencial à função jurisdicional” com atribuição de “defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis”[115], sendo certo que sua atuação em juízo se encontra qualificada pela prova (especialmente pericial) previamente produzida nos inquéritos civis[116] e audiências públicas[117] que promove para esclarecimentos dos fatos e formação de sua autônoma convicção.
 

Também o Judiciário pode convocar audiências públicas e valer-se de inspeções pessoais[118] e de prova técnica[119] em geral para formar e robustecer seu entendimento sobre as graves questões levantadas quanto à implementação dos direitos sociais; o STF tem-se valido desses instrumentos sobretudo após a edição da Lei nº 9.868[120] e da Lei nº 9.882[121], ambas de 1999, e da sua Emenda Regimental nº 29/2009[122]. Afasta-se assim a usual censura à “debilidade do órgão jurisdicional de não dispor de informações técnicas, dados e provas suficientes a fim de avaliar a política estatal[123]”. Ademais, o procedimento contraditório legitima o controle judicial das políticas públicas[124] para que se evite a discriminação ou exclusão individual ou social incompatível com a ordem constitucional (a mesma que estrutura a composição e a competência dos Tribunais) cuja força normativa, adverte HESSE[125], ”depende da disposição de considerar seus conteúdos como obrigatórios e da determinação de realizar esses conteúdos, também contra resistências”.

Anote-se que a jurisprudência dos Tribunais brasileiros ressalva que a função por eles exercida é de controle[126], não de substituição à Legislação ou à Administração, pois que a estas cabe primariamente exercer o governo, tomando decisões e implementando-as em nome do Bem Comum, atento às doutrinas do mínimo existencial e da reserva do possível, assim como ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade. O que não podem Legislativo e Executivo é descumprir os vetores constitucionais que devem presidir, iluminar, sua atuação[127]. A injuridicidade da omissão ou da opção, máxime quando gera o aviltamento dos direitos fundamentais, é que enseja ao Judiciário, provocado, agir pontualmente[128] para determinar a implementação das políticas públicas, legitimamente constitucionalizadas ou legisladas, sobretudo quanto aos direitos sociais que equalizam a oportunidade de exercício dos direitos individuais e políticos.

6. Considerações finais

A atividade financeira do Estado é uma atividade meio a serviço de sua atividade fim, que é a promoção do Bem Comum.

A ideia de Bem Comum varia no tempo e no espaço; já foi representada apenas pela segurança física das pessoas e das cidades muradas, mas traduz fundamentalmente a promoção da dignidade da pessoa humana, com respeito à Natureza, na qual se integra a Humanidade. Na dicção da Constituição brasileira, abraça os objetivos da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, com a redução da desigualdade e a promoção do bem de todos. É a essa teleologia que devem corresponder as Finanças Públicas. Não vivendo para si, o Estado se organiza e administra para o Povo que o institui e sustenta. O desafio é: fazê-lo de que maneira e com quais recursos?

Por definição escassos, em face das infinitas necessidades humanas, os meios são dados pela Economia; e os recursos públicos são juridicamente regrados pelo Direito Financeiro e pelo Direito Tributário, que dele evoluiu. O respectivo sistema deve responder, porém, não apenas ao interesse estatal de adequada governança[129], mas também aos valores agasalhados pela sociedade. Quando os valores referidos se veem negligenciados, subvertem-se os vetores constitucionais, frustram-se as expectativas e esgarça-se o tecido social, tensionado pelo descaso com o emprego dos recursos públicos em desalinho com as justas prioridades normativamente estabelecidas.

 Os princípios do Direito Financeiro, formulados e adensados pelo labor perene da doutrina, iluminam a ordem jurídico-financeira, permeando a Constituição e a legislação específica. À arrecadação das receitas públicas deve corresponder o equitativo gasto público que financie as políticas públicas de atendimento aos direitos individuais e sociais, que em última análise exsurgem dos valores priorizados pelo povo legitimamente representado. Nisto se resume a luta milenar dos governados face aos governantes e, não por outra razão, o “no taxation without representation”, gérmen da legalidade financeira, tributária e orçamentária, cuidou de deixar patente que os subsídios ou tributos requisitados ao povo devem ser em qualquer caso “razoavelmente fixados[130]” em razão das despesas que se destinam a custear.

Com a evolução da democracia, não há lugar para recursos mal geridos se esvaindo no superfaturamento, na fraude em licitações, nos desvios de finalidade e de comportamento dos agentes públicos. E com a concomitante evolução das Finanças Públicas na direção do Estado de Bem-Estar o orçamento, como de resto a atividade financeira, deixa de ser um mero instrumento de organização estatal interna para desabrochar na sua real missão de veículo concretizador dos direitos humanos, especialmente os sociais, dos quais depende, para as maiorias, a vida com dignidade.

Nesse contexto, são intoleráveis a carga tributária sem retorno em serviços públicos de qualidade e a insuficiência orçamentária acompanhada da inércia administrativa, por representarem a frustração das promessas constitucionais fiadoras dos anseios mais caros da sociedade. Em consequência, para além de políticas públicas indigentes ou negligenciadas, é mesmo o direito pessoal de cada cidadão-contribuinte que se vê aviltado e merecedor da cabível tutela jurisdicional.

Como não há poder ilimitado ou absoluto e todo poder exercido enseja controle, é no grande legado de Montesquieu[131] que se há de buscar amparo judicial contra o arbítrio que retira mais dos que menos têm (via tributação injusta[132] e regressiva) e deixa de alocar recursos públicos para garantia do direito social à saúde, à educação, à moradia, ao transporte, em especial aos mais necessitados.

Os Tribunais brasileiros, vencendo a resistência de certas posições doutrinárias de ideologia anacrônica, têm se comportado exemplarmente na vanguarda da implementação dos direitos sociais, guardando a Constituição em nome dos valores nela agasalhados, os quais, em última análise, dependem do exercício solidário do Poder Financeiro, cujos desvios seja na Legislação, seja na Administração, cabe ao Poder Judiciário reparar, como lhe compete e impende.

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[1] Cf., no ponto, SARLET, Ingo W. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed., Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2014, p. 263. V. nota 78 infra.

[2] Proclamada como dever de fraternidade (ao lado da liberdade e da igualdade) pela Revolução Francesa em 1789. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão está recebida expressamente pelo preâmbulo da Constituição de 1946. Malgrado a disparidade de interpretações, parece inegável que a fraternidade na visão dos revolucionários jacobinos comportava a missão de “identificar um ‘espírito público’ ou ‘consciência pública’ capaz de criar a unidade entre os cidadãos” (BAGGIO, Antonio Maria. “A ideia de fraternidade em duas revoluções: Paris 1789 e Haiti 1791”, in Baggio A. M. (org), O princípio esquecido/1. A fraternidade na reflexão actual das ciências políticas, Cidade Nova, São Paulo 2008, p. 33  

(cf. http://www.ruef.net.br/uploads/biblioteca/9f3d3debe63d3e9ad2fc4a51762a9120.pdf). Essa consciência pública envolvia necessariamente o concurso de todos de forma justa, conforme suas possibilidades, para a manutenção da república (artigo 13).

[3] BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 13ª edição, Forense. Rio de Janeiro: 1981, p. 2; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª edição, Malheiros. São Paulo: 1990, p. 296-298; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed., Forense. Rio de Janeiro: 2006, p. 425.

[4] WOLFF, Hans J.; BACHOF, Otto; STOBER, Rolf. Direito Administrativo. (trad. portuguesa da 11ª edição alemã revista, 1999), Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: 2006, v. 1, p. 64-65.

[5] BOUVIER, Michel; ESCLASSAN, Marie-Christine; LASSALE, Jean-Pierre. Finances Publiques. 11ª ed., LGDJ lextenso éditions. Paris: 2012, p. 26; 66; 70.

[6] BUCHANAN, James M.; FLOWERS, Marilyn R. Introducción a la Ciencia de la Hacienda Pública (trad. espanhola, 5ª ed. norte-americana original, 1980), Editorial de Derecho Financiero, Madrid: 1982, p. 147-148; 153-154.

[7] VILLEGAS, Héctor B. Curso de Finanzas, derecho financiero y tributario. 9ª ed., 2ª impr., Astrea. Buenos Aires: 2009, p. 4. As demandas por direitos sociais (ou de segunda geração, isto é, educação e saúde públicas, previdência social, transporte público, etc.) desaguaram em maiores necessidades públicas a serem atendidas pelo Estado através da atividade financeira na vertente da Despesa, tudo concorrendo para a transmutação das Finanças Públicas, de finanças liberais neutras para finanças funcionais, interventivas e de cunho social.

[8] Cidadania fiscal é a denominação dada ao coletivo do povo que paga tributos com que o Estado custeia os serviços públicos prestados à sociedade.

[9] Cf. nosso Direito Tributário. Capacidade Contributiva. 2ª ed., Renovar. Rio de Janeiro: 1998, p. 5-6.

[10] “Durante a Idade Média, o tributo era consequência da submissão dos súditos aos senhores feudais, mesmo quando os Estados nacionais se iam consolidando com fins absolutistas” (GARCÍA NOVOA, César. El concepto de tributo. Lima: Tax Editor, 2009, p. 27).

[11] Está na História das finanças públicas: “O que no passado se achava legítimo, como decorrência das conquistas da guerra, hoje seria intolerável” (SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 119).

[12] Vinculados todos, na atualidade, a dotar de efetividade os direitos fundamentais, cuja relação com as finanças públicas não era visível no paradigma clássico das finanças neutras. A propósito, cf. CORTI, Horacio G. Derecho Constitucional Presupuestario. 2ª ed. Abeledo Perrot, Buenos Aires: 2011, p. XXXI, XXXV; 1-2.

[13] GIULIANI FONROUGE, Carlos M. Derecho Financiero. Buenos Aires: 7ª ed., Depalma, 2001, v. I, p. 315.

[14] “A ciência das finanças tem por objeto o estudo das diversas formas pelas quais o Estado e qualquer outro poder local obtêm riquezas materiais necessárias a sua vida e ao seu funcionamento, assim como o modo por que essas riquezas são utilizadas” (NITTI, Francesco. Princípios da Ciência das Finanças (trad. brasileira), Rio de Janeiro: Atena Ed., 1937, v. 1, p. 21).

[15] BALEEIRO, ibiden. Essa qualificação varia no tempo e no espaço, amolda-se à ideologia dominante no país e no momento em que se analisa a questão; mas, seguramente, depende de uma decisão política produzida e válida nos termos da ordem jurídica vigente (cf. notas 3 a 7 supra).

[16] PANCRAZI, Laurent. Le príncipe de sincérité budgétaire. Paris: L’Harmattan, 2012, p. 193.

[17] A moralidade fiscal extrapola a atividade financeira, norteando a feitura da legislação financeira, os ritos e decisões dos processos tributários, bem assim o proceder da atividade judicante.

[18] Cf. Recurso Extraordinário n° 271.286 AgRg, in Revista Trimestral de Jurisprudência. Brasília: STF, v. 175, p. 1212-1213. No mesmo sentido, cf. RE 393175 AgR (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=402582) e RE 271286 AgR (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538). 

[19] “... mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência” (cf. decisão monocrática na ADPF nº 45, in http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%2845%2ENUME%2E+OU+45%2EDMS%2E%29%28%28CELSO+DE+MELLO%29%2ENORL%2E+OU+%28CELSO+DE+MELLO%29%2ENPRO%2E+OU+%28CELSO+DE+MELLO%29%2EDMS%2E%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/bl9jp2x).

[20] Art. 37 da Constituição Federal.

[21] idem

[22] Horacio Corti anota, com propriedade, que “o caráter chave dos direitos sociais está vinculado às características de sociedades como a argentina, baseadas, de forma estrutural, na exclusão social, na correlata concentração da riqueza e, assim, em enormes desigualdades que cabe qualificar de persistentes” (Ley de presupuesto y derechos fundamentales: los fundamentos de um nuevo paradigma jurídico-financiero, in Revista Jurídica de Buenos Aires. Buenos Aires: Facultad de Derecho, Universidad de Buenos Aires, 2010, tomo I, p. 642).

[23] Direito Financeiro é o ramo do direito público que se ocupa da normatização do fenômeno financeiro, isto é, das Finanças Públicas (receita e despesa públicas, orçamento público e execução orçamentária, gestão financeira e contabilidade pública, e crédito público), tendo por objeto a regulamentação jurídica da atividade financeira do Estado e dos demais entes que desempenham uma função ou missão pública, “em seus diferentes aspectos: órgãos que a exercem, meios pelos quais ela se exterioriza e conteúdo das relações que origina” (cf. GIULIANI FONROUGE, Carlos. M. Derecho Financiero. 7ª ed. Depalma, Buenos Aires: 2001, p. 30).

[24] Cf. XAVIER, Alberto. Do Procedimento Administrativo. São Paulo: Ed. Buchatski, 1976, p. 23. Função estatal define-se como “o Poder posto em ação”, como ensina o Mestre, através da qual se busca atingir o fim do Estado, que é o de servir à sociedade, promovendo o Bem Comum. Esse agir estatal se manifesta sempre por um processo, administrativo, legislativo ou judicial.

[25] Exige-se no direito público uma legalidade própria, a nominatividade, isto é, a Administração só pode agir quando autorizada em lei, enquanto que o indivíduo nasce livre para agir salvo proibição legal.

[26] FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Forense. Rio de Janeiro: 1979, p. 4-5.

[27] “Em direito público, designa, também a palavra administração a atividade do que não é senhor absoluto. (…) Estão os negócios públicos vinculados, por essa forma, – não ao arbítrio do Executivo, – mas, à finalidade impessoal, no caso, pública, que este deve procurar realizar.” (LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo Brasileiro. 2ª ed., Livraria do Globo. Porto Alegre: 1939, p. 20-21).

[28] Na lição de Zanobini, atribui-se à lei francesa de 18 de fevereiro de 1800 a certidão de nascimento do Direito Administrativo, na medida em que “deu à Administração uma organização juridicamente garantida e externamente obrigatória”, num sistema de subordinação do Estado como pública administração sob o império do direito e da jurisdição [sistema que foi recebido pela doutrina alemã e italiana como Estado segundo o Direito (“Stato secondo il diritto”) ou Estado de Direito (“Reichtsstaat”)], pressupondo, portanto, a aplicação de um direito especial referente à Administração, diverso do direito civil ou do direito comercial (ZANOBINI, Guido. Corso di Diritto Amministrativo. Milano: 4ªed., Giuffrè Ed., 1945, v. I, p. 39-40). Se assim sucedeu-se no direito de tradição romano-germânica, no direito anglo-saxão, historicamente avesso à distinção entre direito público e direito privado, até fins do século XIX aplicava-se o “common law” às relações jurídico-administrativas, principalmente àquelas de cunho civil ou comercial. Ensina Schwartz que, nos Estados Unidos em especial, entendia-se que o interesse público nada mais era do que o somatório dos interesses individuais; nessas condições, à diferença do francês, o direito administrativo norte-americano seria um sistema de regramento das “relações entre Estado e o cidadão comum”, ademais de admitir que os conflitos entre estes deveriam ser decididos por tribunais judiciais (e não pelo Contencioso Administrativo de matriz francesa) – SCHWARTZ, Bernard. Le Droit Administratif Américain. Notions Générales. Paris: Libr. Du Recueil Sirey, 1952, p. IX-avant-propos; p. 5-6).

[29] VELOSO, Juliano Ribeiro Santos. Direito ao Planejamento. Belo Horizonte Ed. D’Plácido, 2014, p. 82.

[30] DOMINGUES, José Marcos. Tributação, orçamento e políticas públicas, in Revista Interesse Público. Belo Horizonte: Ed. Fórum, ano XII, 2010, nº 63, p. 147. Direito tributário e direito orçamentário, irmanados no direito financeiro, são vertentes imprescindíveis da ordem juspolítica erigida em nome da proteção dos direitos humanos, sejam individuais ou sociais, em suma, dos direitos fundamentais.

[31] Cf. SANT’ANNA E SILVA, Sebastião. Os princípios orçamentários. Rio de Janeiro: FGV, 1954, p. 35.

[32]  Artigo 174 da Constituição.

[33] Doutrina iniciada na Alemanha do séc. XIX com Paul Laband e já então criticada por autores como Myrbach-Reinfeld e Philippe Zorn (cf., do Autor, O desvio de finalidade das contribuições e o seu controle tributário e orçamentário no direito brasileiro, in Direito Tributário e Políticas Públicas, DOMINGUES, J. M. (coord.). São Paulo: MP Editora, 2007, p. 316-317; 321-332. A propósito, anota TIAGO DUARTE que “a distinção dogmática entre lei em sentido formal e lei em sentido material (…), depois de uma fase de maior euforia, mesmo em sistemas parlamentares, [terá] perdido a sua preponderância na actualidade legislativa e doutrinária” (A Lei por Detrás do Orçamento. Coimbra: Almedina, 2007, p. 298). Daí a pilhéria de que “haveria, assim, que ter muita vontade para se gastar agora tempo em resgatar no baú das recordações quantas teorias em sentido contrário” (MARTÍNEZ LAGO, Miguel Ángel. Ley de Presupuestos e Constitución. Madrid: Trotta, 1998, p. 25). Cf. também MENÉNDEZ MORENO, Alejandro. Derecho Financiero y Tributario. 10ª ed., Lex Nova, Valladolid, 2009, p. 441-442.

[34] Tal argumento encontra respaldo nos preceitos constitucionais “que impõem aos poderes públicos certos objetivos ou fins em sua atuação”, créditos orçamentários que adquirem caráter instrumental dos princípios e valores desenhados pela Constituição, abraçando assim a moderna função do orçamento no Estado contemporâneo”. MARTÍN QUERALT, LOZANO SERRANO, TEJERIZO LÓPEZ, CASADO OLLERO. Curso de Derecho Financiero y Tributario. Madrid: Tecnos, 20ª ed., 2009, p. 714-715. No mesmo sentido, PLAZAS VEGA, Mauricio (Derecho de la Hacienda Pública y Derecho Tributario. Bogotá: 2006, tomo I, p. 474), para quem, ademais, o “velho dogma” do orçamento-lei formal “já não tem cabimento em um contexto no qual o direito não se esgota nas relações intersubjetivas e na bilateralidade”.

[35] La Configuración Constitucional del Gasto Público. Madrid: Tecnos, 1995, p. 50.

[36] Derecho Financiero. Buenos Aires: Depalma, 7ª ed., 2001, v. 1, p. 179-180.

[37] El Orden Socioeconômico en la Constitución. Buenos Aires: Ediar, 1999, p. 359-363.

[38] CORTI, Horacio G. Derecho Constitucional Presupuestario. 2ª ed. AbeledoPerrot, Buenos Aires: 2011, p. 759. Trata-se de parte do direito objetivo, sendo os orçamentos “leis organizativas ou de ação, ou seja, cuja importância para toda a coletividade é indubitável”, num “contexto normativo fundamental da ação estatal, que delimita o acontecer da função pública”. PLAZAS VEGA, Mauricio. op. loc. cit.

[39] Curso de Direito Financeiro. São Paulo: 2ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p. 319-320.

[40] Trata-se do princípio da destinação pública do tributo, consubstancial à jusfinanceira “correlação entre gasto público e contribuição do indivíduo” que flui da Magna Charta britânica até as Constituições contemporâneas e à qual se aludirá no capítulo 4.1 infra.

[41] Curso de Direito Financeiro Brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 222-223.

[42] Sob Diocleciano, o “tributum capitis”, “capitatio humana”, antes cobrado em certas províncias romanas, se tornou uma instituição geral (cf. BERGER, Adolf. Encyclopedic Dictionary of Roman Law. Philadelphia: The American Philosophical Society, 1953, repr., 1991, v. 43, part 2, p. 380).

[43] BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência do Direito, cit., p. 115-116; 128-131.

[44] No sentido do texto, cf. a pena mais jovem de POLI, Luciana Costa Poli; HAZAN, Bruno Ferraz. Orçamento Público: desenhando um modelo democrático de planejamento orçamentário (in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: FGV, mai/ago 2014, v. 266, pp. 187-208, esp. 191, 204). O direito brasileiro constitucionaliza políticas públicas desde a Constituição de 1934 (cf., do Autor, Tributação, orçamento e políticas públicas, op. cit.,p. 153.

[45] BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução ao Estudo do Direito, cit., p. 267; FERNANDES, Simone L. Contribuições neocorporativas, Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 53 e seguintes; cf. tb. nossos O Código Tributário Nacional, a Constituição e as Contribuições Parafiscais, in ORLANDO, Breno L. K. et al (orgs.) Cadernos de Debates Tributários. Rio de Janeiro: Lúmen Juris Ed., GDT-Rio, EMARF-2ª Região, NEFIT-UERJ, v. 1, p. 123, e DOMINGUES, José Marcos. Contribuições parafiscais, finalidade e fato gerador. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo: Dialética, out. 2001, v. 73, p. 55.

[46] RODRIGUEZ BEREIJO, Álvaro. El presupuesto del Estado. Introducción al Derecho Presupuestario. Madrid: Tecnos, 1970, p. 50-51; HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1998, p. 384-385.

[47] A tributação conforme a dignidade da pessoa humana tem-se por satisfeita quando respeita a capacidade contributiva e emprega a extrafiscalidade na promoção dos direitos fundamentais (cf., no ponto, BUFFON, Marciano. Tributação e Dignidade Humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009, p. 146).

[48] BECKER, Alfredo A. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: 2a ed., Saraiva, 1972, p. 533.

[49] CORTI, Horacio G. Derechos fundamentales y presupuesto público: una renovada relación en el marco del neoconstitucionalismo periférico, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro. CONTI, J. M. e SCAFF, F. F., coords., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 140, 146, passim.

[50] Estes “vínculos constitucionais à receita pública” atinentes a “conteúdos essenciais”, a serem observados pela “legislação de atuação”, ensejam claramente o controle jurisdicional de constitucionalidade, quanto à satisfação das políticas públicas constitucionalizadas, que não podem ser desconsideradas pelos poderes constituídos. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Uma Discussão sobre Direito e Democracia. Trad. brasileira.  Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Juris, 2012, p. 63; CORTI, Horacio G. Derecho Constitucional Presupuestario. 2ª ed. Abeledo Perrot, Buenos Aires: 2011, p. XXXVII).

[51] DOMINGUES, José Marcos. Tributação, orçamento e políticas públicas. Revista Interesse Público. Belo Horizonte: IP, v. 63, set/out-2010, p. 153-154.

[52] Cf. nossos Contribuições parafiscais, finalidade e fato gerador, in Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 73, p. 53-63, São Paulo: Dialética, out. 2001; Contribuições sociais, desvio de finalidade e a dita reforma da previdência social brasileira, in Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 108, p. 129, São Paulo: Dialética, set. 2004; O conteúdo da extrafiscalidade e o papel das Cides. Efeitos decorrentes da não utilização dos recursos arrecadados ou da aplicação em finalidade diversa, in Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 131, p. 53, São Paulo: Dialética, ago. 2006.

[53] O mesmo se diga da política constitucional para a educação, com “conteúdos mínimos” respeitadores dos “valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (art. 210), sendo certo que a União empregará no mínimo 18%, e Estados, Distrito Federal e Municípios, 25%, de suas respectivas arrecadações com impostos “na manutenção e desenvolvimento do ensino” (art. 212). Não se olvide, ademais, o dever constitucional “da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde” etc., certo que “o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente” (art. 227 e § 1º), ações de assistência social essas que serão “realizadas com recursos do orçamento da seguridade social” além de outras fontes (§ 7º do art. 227 c/c art. 204). Trata-se, portanto, de determinações constitucionais tutelares dos direitos humanos atinentes à vida com dignidade, ademais consagrados pelos objetivos fundamentais da República, especialmente os de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I).

[54] Muito antes disso, a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 4.024, de 20/12/1961) já proclamara que “a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola” (art. 2º), obrigando-se o Estado a “fornecer recursos indispensáveis” a esse desiderato “quando provada a insuficiência de meios, de modo que sejam asseguradas iguais oportunidades a todos” (art. 3º, II).

[55] Tributo e orçamento como faces da mesma moeda, na figuração de Marcus Abraham: “… a face da arrecadação, com uma de suas espécies mais relevantes: o tributo; (…) a face da destinação, com o seu instrumento jurídico, político e econômico materializador: o orçamento público” (Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 19.

[56] GIULIANI FONROUGE, Carlos. M. Derecho Financiero, cit., p. 184, 206.

[57] Art. 174 da Constituição.

[58] Art. 165, I, e § 1º. Na Constituição de 1967/69: “Art. 63. O orçamento plurianual de investimento consignará dotações para a execução dos planos de valorização das regiões menos desenvolvidas do País”).

[59] Segundo Fernando Rezende, “De uma posição inicial bastante modesta (…) o papel do governo modificou-se substancialmente”, sendo certo que “A diversificação dos objetivos da intervenção governamental na atividade econômica, bem como dos instrumentos utilizados, gera possibilidades de conflito e requer um esforço organizado de planejamento e coordenação”. Cf. REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. Atlas. São Paulo: 2001 (p. 17; 42-43).

[60] Déficits episódicos e mesmo déficits sistemáticos (“deficit spending”), em que avulta o papel da despesa pública e também do crédito público através da oferta de moeda e da taxa de juros inclusive para controle da inflação (art. 164, § 2º, da Constituição brasileira). Cf. BALEEIRO, Aliomar, Uma Introdução à Ciência das Finanças, cit., p. 399-404; 453-455.

[61] “A grande crise de depressão econômica da década de 1930 deu origem a estudos que vieram justificar a necessidade de o governo intervir na economia para combater a inflação ou o desemprego de mão-de-obra” (REZENDE, op. cit., p. 17-18).

[62] MICHELI, Gian Antonio. Curso de Derecho Tributario, trad. espanhola. Madrid, Ed. Derecho Financiero, 1975, p. 144; sobre a “necessária coordenação entre ingressos e gastos públicos” (HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Económica y Sistema Fiscal. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 110).

[63] A par da compreensão do princípio da capacidade contributiva em sentido objetivo ou absoluto (exigência de uma riqueza apta a ser tributada) e subjetivo ou relativo (subordinação de parte dessa riqueza à tributação em face de condições individuais), a doutrina revela um duplo plano de sua expressão: um horizontal, que determina que sujeitos com a mesma riqueza suportem tributação igual; e um vertical, a demandar a tributação progressiva em face de maiores riquezas, com vistas à realização da igualdade relativa (HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Económica y Sistema Fiscal. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 108-109). No mesmo sentido, quanto à compatibilização da capacidade contributiva com a progressividade pelo ângulo da justiça distributiva, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2005, p. 297.

[64] Cf. no ponto COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros Ed., 1993, p. 39; Curso de Direito Tributário. 4ª ed. Saraiva, São Paulo: 2014, p. 94.

[65] A unicidade do fenômeno financeiro é realçada pela contemporânea doutrina espanhola no sentido da “necessária coordenação entre ingressos e gastos públicos” (HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Económica y Sistema Fiscal. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 110).

[66] Na Constituição de 1967 (art. 65, § 3º) o princípio da não vinculação aplicava-se a todos os tributos. Idem após a Emenda 1/69 (art. 62, § 2º).

[67] Sem vedação constitucional, algumas leis tendem a vincular a receita de taxas ao serviço público cuja prestação enseja a sua instituição (por exemplo, taxa judiciária vinculado a um Fundo Judiciário, ou taxa de prevenção e extinção de incêndios vinculada a ao um Fundo de Aparelhamento do Corpo de Bombeiros), ou ainda, as receitas patrimoniais do Estado a variados fins.

[68] Cf. Sebastião de Sant’Anna e Silva. Os Princípios Orçamentários, cit., p. 26.

[69] Os parlamentos das democracias consolidadas aparelham-se para o debate orçamentário em condições de maior igualdade com a Administração. Mas, no caso brasileiro ainda há muito que caminhar nesse terreno, havendo-se votado emenda constitucional garantindo a impositividade de emendas parlamentares individuais, a demonstrar casuísmo antidemocrático e déficit republicano [cf. nossos “Brasil precisa de reforma constitucional financeira”, in Revista Consultor Jurídico (http://www.conjur.com.br/2013-out-02/jose-domingues-brasil-reforma-constitucional-financeira); e “Transporte Público. É necessário orçamento sério e prestação de contas”, in Revista Consultor Jurídico (http://www.conjur.com.br/2013-jun-21/jose-domingues-necessario-orcamento-serio-prestacao-contas)]. 

[70] Cf., no ponto, Brian Barry: “[…], para serem dignas de respeito, é necessário que leis e políticas governamentais resultem de um processo de “justificações alcançadas abertamente” (apud PENNA, Saulo Versiani. A judicialização dos direitos sociais após 25 anos da Constituição Federal brasileira, in Lex Humana. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis, v. 6, n. 1, 2014, p. 196-218, http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=554&path%5B%5D=311). A lição é clássica, pois lê-se em Montesquieu: “Se não se distribuírem as rendas ao povo, é necessário fazê-lo ver que essas são bem administradas: mostrá-las significa, de alguma forma, permitir ao povo participar delas” (O Espírito das Leis (trad. brasileira). São Paulo: Martin Claret, 2006, livro quinto, capítulo VIII, p. 66).

[71] Na França, as “adjontions budgetaires” foram criticadas por Jèze por configurarem deselegância parlamentar (cf. Sebastião de Sant’Anna e Silva. Os Princípios Orçamentários, cit., p. 32).

[72] Cf. § 1º introduzido ao artigo 34.

[73] Cf. nosso “Emendas de parlamentares ou caudas orçamentárias?”, in Monitor Mercantil, edição de 7 de maio de 2013 (http://www.monitormercantil.com.br/index.php?pagina=Noticias&Noticia=132723).

[74] É assim nas democracias; parece que ainda não no Brasil (cf. nosso “Fixar despesa cabe ao Legislativo, não a cada integrante”, in Revista Consultor Jurídico (http://www.conjur.com.br/2014-fev-14/jose-domingues-fixar-despesa-cabe-legislativo-nao-cada-integrante).

[75] Nesse sentido, cf. ABRAHAM, Marcus. Valores e princípios jurídicos no direito tributário e financeiro, in ABRAHAM, Marcus e PEREIRA, Vitor (coord.). Princípios de Direito Público. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2018, p. 212.

[76] No mesmo sentido é a crítica de Vanessa Siqueira (A frustração do planejamento à custa do sacrifício ao princípio da legalidade orçamentária in ABRAHAM, Marcus e PEREIRA, Vitor Pimentel (coord.). Princípios de Direito Público, op. cit., p. 428.

[77] Em Platão, o direito natural seria “uma ordem mais alta e mais perfeita, para servi de ponto de referência ideal” e, em Aristóteles, o que “por toda a parte tem a mesma força” (cf. LIMA, Hermes. Introducção á Sciencia do Direito. 3ª ed. Companhia Editora Nacional, São Paulo: 1937, p. 42-43).

[78] Na tradição judaico-cristã: “Também disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gênesis 1:26-27).

[79] “… assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza (…) verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade” (http://www.arqnet.pt/portal/teoria/declaracao_vport.html).

[80] “… declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem (…) na presença e sob a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão: Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. (…). Art. 2º. … a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão” (Cf. in http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html).

[81] Cf. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito (trad. portuguesa da 6ª edição alemã Rechtphilosophie), Coimbra: A. Amado Editor, 1979, p. 63.

[82] Para Canotilho, “a ideia subjacente à afirmação dos direitos e deveres individuais foi a de converter os direitos do homem (situados no plano do direito natural) em direitos fundamentais, institucionalizados juridicamente e constituindo direito objectivamente vigente” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2ª ed. Alemedina, Coimbra: 1998, p.105). V. nota 1 supra.

[83] CORTI, op. cit., p. 759.

[84] CORTI, Horacio G. Derechos fundamentales y presupuesto público: una renovada relación en el marco del neoconstitucionalismo periférico, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro (CONTI, J. M. e SCAFF, F. F., coords., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 149. Cf. também, do autor citado, Ley de presupuesto y derechos fundamentales: los fundamentos de um nuevo paradigma jurídico-financiero, in Revista Jurídica de Buenos Aires. Buenos Aires: Facultad de Derecho, Universidad de Buenos Aires, 2010, tomo I, p.  656-657.

[85] CORRÊA, Oscar Dias. Alcance e compreensão atual da Declaração dos Direitos Humanos, in Estudos de Direito Político-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 653.

[86] Direitos Humanos, in Estudos de Direito Político-Constitucional, cit., p. 703, 706.

[87] Cf. Montesquieu, op. cit., livro quinto, VIII, p. 66.

[88] Segundo Cançado Trindade, altos índices de disparidades sociais “levam à triste e inelutável convivência, em seu quotidiano, com a insensibilidade e a insensatez das classes dominantes, a injustiça institucionalizada e perpetuada, e a continuada dificuldade do meio social em identificar com discernimento e compreender os temas verdadeiramente primordiais que lhe dizem respeito, a requerem reflexão e ação com seriedade” (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio ambiente. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 24).

[89] Nesse sentido, OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Gastos Públicos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012, p. 122.

[90] Cf. decisão monocrática in http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ADPF%24%2ESCLA%2E+E+45%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/a9kzfpa.

[91] MENDES, Gilmar F., COELHO, Inocêncio M., BRANCO, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. Saraiva, São Paulo: 2009, p. 757, 761.

[92] Ibidem. Ademais, porque “seria descabido, por exemplo, o emprego excessivo de recursos em publicidade (…) em relação ao investimento no sentido de preservar a dignidade da pessoa humana” (OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro, 4ª ed., 2011, cit., p. 315.

[93] DOMINGUES, José Marcos. Tributação, orçamento e políticas públicas, in Revista Interesse Público. Belo Horizonte: Ed. Fórum, ano XII, 2010, nº 63, p. 166-167.

[94] Art. 41, II, da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. A adoção de crédito especial será pertinente na ausência de dotação específica (art. 41, II, da Lei nº 4.320/64), tendo em vista a estatura do direito fundamental em perigo, embora, como disse o Ministro Gilmar Mendes, o Judiciário na quase totalidade dos casos determina o efetivo “cumprimento de políticas públicas já existentes”, quando já existe, pois, dotação orçamentária própria. Se ato específico do Legislativo inexistir, ainda assim, a lei de que dependeria a abertura de tais créditos é a própria Constituição, a Lei Suprema, que tutela o direito afirmado pelo Judiciário, e a dimensão do gasto equitativo decorre da própria decisão a ser materialmente executada (o valor do medicamento, o valor de uma creche, o valor de uma clínica para jovens drogados, etc.), sem o que não se justificará toda a proteção que o sistema tributário pretende garantir à cidadania, que continuará a pagar tributos sem proveito, sem finalidade, máxime estão em risco os seus direitos fundamentais.

[95] Na ADI 2925 o STF, em 2003, determinou interpretação conforme de norma orçamentária de forma a impedir que a receita de contribuições com vinculação constitucional pudesse ser consumida em outra despesa que não aquela prevista na Lei Maior, considerando inconstitucional a abertura de “crédito suplementar em rubrica estranha à destinação do que arrecadado” (cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266953). Na ADI 4048 o STF, 2008, admitiu controlar in abstracto leis e atos normativos independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato do seu objeto, inclusive normas orçamentárias (cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=542881).

[96] ALMEIDA, Luiz Antônio Freitas de. Direitos Fundamentais Sociais e Ponderação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2014, p. 244.

[97] Ibiden.

[98] Cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610255.

[99] Cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5343056.

[100] Cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13269137.

[101]Cf. Ação Cível Originária (ACO 1.224/PE):  http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748376679, julg. em 20.09.2018. Quanto ao orçamento mínimo da saúde, anota Élida Graziane Pinto que o “desenho da política pública da saúde” deve ser financiado principalmente pela “vinculação orçamentária” (Financiamento dos direitos à saúde e à educação; uma perspectiva constitucional: Belo Horizonte, Ed. Fórum, 2015, p.81).

[102] No REsp nº 1.068.731 (2008/0137930-3), feito de iniciativa do Parquet, decidiu o STJ que “a falta de vagas em Unidades de Tratamento Intensivo – UTIs no único hospital local viola o direito à saúde e afeta o mínimo existencial de toda a população local, tratando-se, pois, de direito difuso a ser protegido” (cf. https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=12839184&num_registro=200801379303&data=20120308&tipo=5&formato=PDF).

[103] Cf. https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=3349470&num_registro=200602708863&data=20070913&tipo=5&formato=PDF.

[104] Cf. https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=2780250&num_registro=200501832460&data=20070201&tipo=5&formato=PDF.

[105] Cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428. Carlos Alexandre de Azevedo Campos entrevê neste acórdão uma atuação ativa do STF “para fazer valer o projeto constitucional de inclusão social e de garantia de vida digna quando a omissão institucional colocar em risco tais objetivos” (Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2014, p. 330).

[106] Cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=354801.

[107] Cf. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=594740

[108] Cf. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235137.

[109] Lê-se na ementa: “Acesso à creche aos menores de zero a seis anos – direito subjetivo (…) escassez de recursos como o resultado de uma decisão política – prioridade dos direitos fundamentais – conteúdo do mínimo existencial – essencialidade do direito à educação – precedentes do STF E STJ (cf. https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=9568774&num_registro=201000486284&data=20100429&tipo=5&formato=PDF).

[110] Cf. nota 91 supra.

[111] Processo nº 2008.01.3.010679-6 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

[112] Ministro Cezar Peluso.

[113] Ministro Gilmar Mendes.

[114] “Em 5 de março de 2009, convoquei Audiência Pública em razão dos diversos pedidos de suspensão de segurança, de suspensão de tutela antecipada e de suspensão de liminar em trâmite no âmbito desta Presidência, com vistas a suspender a execução de medidas cautelares que condenam a Fazenda Pública ao fornecimento das mais variadas prestações de saúde (fornecimento de medicamentos, suplementos alimentares, órteses e próteses; criação de vagas de UTIs e leitos hospitalares; contratação de servidores de saúde; realização de cirurgias e exames; custeio de tratamento fora do domicílio, inclusive no exterior, entre outros)” - cf. DJe-076, de 30/04/2010.

[115] Art. 127 da Constituição.

[116] Art. 129, III, da Constituição.

[117] Art. 27, IV, da Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993.

[118] Artigo 440 do Código de Processo Civil-CPC.

[119] Art. 130 do CPC. Idem, artigos 420, 421, § 2º.

[120] Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (cf. art. 9º, § 1º).

[121] Dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição (cf. art. 6º, §1º).

[122] Art. 21, XVII.

[123] ALMEIDA, Luiz Antônio Freitas de. Direitos Fundamentais Sociais e Ponderação, cit., p. 286.

[124] Cf. PENNA, Saulo Versiani. A judicialização dos direitos sociais após 25 anos da Constituição Federal brasileira, in Lex Humana. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis, v. 6, n. 1, 2014, p. 207-209 passim – disponível em http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=554&path%5B%5D=311.

[125] Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha (trad. brasileira). Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1998, p. 49.

[126] “… Situação caótica do Hospital Salgado Filho. Dever constitucional do Poder Público (artigo 5º, caput e 196) e direito à saúde do cidadão. Fato que atinge principalmente, a camada mais pobre da população, que não possui plano particular e depende tão somente da rede pública para atendimento. Possibilidade do Judiciário exercer controle de política pública fundamental, fazendo observar os princípios da legalidade e moralidade (artigo 37 da CF). Inexistência de desrespeito à separação dos poderes. necessidade urgente de contratação e médicos e funcionários técnicos, de modo a permitir o regular funcionamento do hospital. Ausência de comprovação, pelo Poder Público, da impossibilidade de remanejamento de receita orçamentária. Precedentes do STJ e STF. Recurso provido para que seja cumprido o déficit de pessoal, com a realização de concurso público (…), bem como corrigidos os procedimentos e sanadas as irregularidades expostas no relatório do Conselho Regional de Medicina, no prazo de seis meses…” (fls. 327-328) – cf. acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro transcrito pelo STF no julgamento do RE 684.612 (nota 122 infra). Desta emblemática decisão ressalta-se o compromisso do Tribunal com o controle de uma política pública vital para o bem do povo, omisso o Estado em prover pessoal ao arrepio do princípio constitucional do concurso público e em remediar falhas administrativas, e não demonstrada a impossibilidade de ajuste orçamentário, patenteando-se a violação do direito à vida com dignidade, que é o fundamento do próprio direito à saúde.

[127] No sentido do texto, cf. OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Gastos Públicos, cit., p. 161.

[128] O STF tem reconhecido a repercussão geral de recursos extraordinários tratando de temas como a não implementação de políticas públicas por ausência de profissionais suficientes na área de saúde (RE 684.612); a obrigatoriedade ou não de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo (RE 566.471);

determinação judicial ao poder executivo de realização de obras em presídio em conexão com a integridade física e moral dos presos (RE 592.581); possibilidade de bloqueio de verbas públicas para garantia do fornecimento de medicamentos, ratificando-se ou não a sua jurisprudência (RE 607.582 e RE 549695); obrigatoriedade, ou não, de o Estado fornecer medicamento não registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RE 657.718) – cf., por todos, acórdão no RE 684.612, de 6 de fevereiro de 2014, publicado em 6 de junho de 2014 (in http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4237089file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/texto_230677751.pdf.), no qual a Relatora, Ministra Cármen Lúcia, afirmou que “A discussão sobre os limites do princípio da independência entre Poderes, quanto à adoção de providências relativas a políticas públicas para implementação de direitos e garantias previstos na Constituição da República, tem sido submetida, de forma reiterada, à análise deste Supremo Tribunal Federal”, destacando: “Presente, portanto, a necessária relevância jurídica e social da matéria versada, além da transcendência da questão, sabido como é que, no Estado brasileiro, a inexistência condições satisfatórias na prestação do serviço de saúde, notadamente para as camadas sociais menos favorecidas, não é peculiaridade deste caso…” – grifa-se.

[129] “A sinceridade e a transparência dos documentos orçamentários e financeiros são, segundo os novos padrões fixados nas normas internacionais, condições essenciais à boa governança e à boa gestão” (cf. PANCRAZI, Laurent. Le príncipe de sincérité budgétaire. Paris: L’Harmattan, 2012, p. 193).

[130] Magna Carta inglesa, art. 12.

[131]“ Quando em uma só pessoa, ou em um mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não pode existir liberdade, pois se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá a liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo” (O Espírito das Leis, op.cit., Livro Décimo Primeiro, Capítulo VI, p. 166).

[132] “Os impostos não podem aniquilar a capacidade econômica dos contribuintes” (cf. Humberto Ávila. Sistema constitucional tributário. 5ª ed., Saraiva: São Paulo, 2012, p. 432).

Contas rejeitadas e orçamento fraudado(*)

José Marcos Domingues

O Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro vem de emitir parecer prévio contrário à aprovação das contas de Governo[i]referentes ao exercício financeiro de 2019.

Segundo frisou o Relator, “a discrepância das projeções de receita verificadas no período revelou uma prática nefasta sobre o equilíbrio das contas públicas, pois inviabilizou o controle previsto pela LRF (…) a projeção superestimada da receita foi decisiva para a insuficiência financeira de R$ 4,24 bilhões, pois possibilitou a realização de empenhos e despesas de montantes superiores ao ingresso de recursos financeiros provenientes de arrecadação de receitas orçamentárias (…), “.

Em destaque, portanto, superestimação da receita em contraponto à despesa fixada, especial e reiteradamente nos relatórios de execução orçamentária. Conhecido expediente de fraude, tem por fim iludir o Parlamento que recebe o projeto de lei orçamentária e os relatórios referidos, a Corte de Contas que tudo audita (art. 69 da Constituição Federal-CF e art. 56 da Lei de Responsabilidade Fiscal-LRF) e também a Cidadania Fiscal que anseia pela execução das políticas públicas.

Ora, dispõe a CF, aliás tradicionalmente, que “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (art. 165, § 8º). Prevê-se também a expedição de relatórios de execução orçamentária após cada bimestre do exercício financeiro (§ 3º do art. 165), sendo que a LRF exige que esses relatórios informem a receita prevista, inicial e atualizada, a receita realizada, no bimestre e no exercício, “e a previsão a realizar” (art. 52, II, a) – tendo, portanto, o Executivo-gestor várias oportunidades de, com transparência (art. 1º, §1º, e art. 48 da LRF), ajustar previsões à realidade e demonstrar competência, responsabilidade e boa-fé. Insuficiente a receita originariamente orçada, a despesa deve ser administrativamente contingenciada, e eventualmente refixada por alteração legislativa.

Do contrário, o que se tem é a corrida de interesses pela liberação de verbas insuficientes à luz da despesa, que é “fixada” na lei orçamentária e com base na qual o poder público contrai obrigações.

Orçamento é coisa séria.

Por isso, o Supremo Tribunal Federal (ADIs 2.925 e 4.048, ADPF 45, STA 145), embora com moderação e deferência aos demais Poderes, preconiza reiteradamente o controle jurídico do orçamento, e também do gasto público como no julgamento do RE 581.352, pois tal é preciso fazer em nome da moralidade e para o bem das finanças nacionais, cuja gestão vê-se às vezes desviada de sua função primordial, que é promover o bem estar do Povo e o pleno desenvolvimento do Brasil.

Mais importante lei votada anualmente, o orçamento “fixa” a Despesa, pois à carga tributária obrigatória corresponde o gasto justo e necessário para prover às políticas públicas, tudo objeto de lei. No Estado Democrático de Direito não há lugar para propostas irresponsáveis. A funesta prática brasileira de embelezamento das rubricas orçamentárias não se sustenta nem moral nem legalmente; e deve-se lembrar que até uma recente Emenda Constitucional (nº 100, de 2019) foi promulgada para incluir o óbvio no art. 165 (“§ 10. A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade).

Tributação e orçamento são vertentes imprescindíveis da ordem jurídico-financeira em nome da proteção dos direitos fundamentais. A repartição equitativa do gasto público decorre entre nós da conjugação do objetivo de construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º, I) com a determinação de graduação da carga tributária conforme a capacidade econômica da cidadania (art. 145, § 1º). E a CF/88 manda que a Administração Pública obedeça à eficiência e à moralidade, entre outros princípios (art. 37).

Superada a velha doutrina germânica, com raiz em Paul Laband, de que o orçamento seria mera lei formal, autorizativo de gastos aos quais não se vincularia a Administração, objeto de crítica já por seus contemporâneos, como Myrbach-Rheinfeld e Phillipe Zorn, e por outros em sucessão—, sendo-lhe subjacente a ideia de que o orçamento apenas traria autorizações de gasto (orçamento autorizativo) com a finalidade de ressalvar a responsabilidade da Administração quanto ao dispêndio público —, a verdade é que, como anota em Portugal Tiago Duarte[ii], “a distinção dogmática entre lei em sentido formal e lei em sentido material (…), depois de uma fase de maior euforia, mesmo em sistemas parlamentares, [terá] perdido a sua preponderância na actualidade legislativa e doutrinária”, e na Espanha Martínez Lago[iii], “haveria, assim, que ter muita vontade para se gastar agora tempo em resgatar no baú das recordações quantas teorias em sentido contrário”.

Ainda na Espanha, o dever de gastar certos créditos orçamentários, especialmente os relativos a investimentos (por definição advindos de uma política pública assumida pelo Estado, seja em sua Constituição, seja em suas leis) levou Martín Queralt e outros[iv] a concluírem que a Administração não está apenas autorizada “senão vinculada a gastar em sua totalidade os créditos previstos para esses investimentos”. Aliás, aduziu Orón Moratal[v], “se a Constituição supõe para os poderes públicos não só um limite, senão também uma vinculação positiva”, então, “impõe um poder/dever, que se manifestará igualmente na vertente dos gastos públicos para implementar as previsões constitucionais”. Tal argumento encontra respaldo nos preceitos constitucionais “que impõem aos poderes públicos certos objetivos ou fins em sua atuação”, créditos orçamentários que adquirem caráter instrumental dos princípios e valores desenhados pela Constituição, abraçando assim a moderna função do orçamento no Estado contemporâneo”).

Assim, como tenho por demonstrado[vi], a natureza jurídica do orçamento público não é a de um mero ato materialmente administrativo; o orçamento é plenamente lei que determina (e não apenas autoriza) o gasto público; nesse sentido, o orçamento afigura-se impositivo e não meramente autorizativo, sob a capa de lei formal. E por que? Porque a lei orçamentária traz em cifras um feixe de políticas públicas resultado de decisões fundamentais do Estado, traduzindo, pois, normas jurídicas de observância cogente (lei material, portanto).

Impõe-se respeito ao objetivo fundamental de construção de uma sociedade soberana, justa e solidária, através de políticas públicas probas, com eficiência e moralidade, que tem levado a estigmas degradantes como orçamento-ficção e carga tributária de 1º Mundo com serviços públicos de 3º Mundo.

Na medida em que evoluiu o pensamento jurídico em direção ao caráter material da lei orçamentária, cogita-se da obrigatoriedade da execução de suas rubricas de despesa[1] (orçamento impositivo), cabendo citar, no particular, a tese de Titularidade recentemente defendida com êxito pelo Professor Doutor Marcus Abraham[vii].

Quebras de receita ou excessos de arrecadação apenas justificariam pontuais ajustes do orçamento.

Em suma, em uma democracia a lei orçamentária existe para ser cumprida, máxime no Estado contemporâneo, caracterizado que é pela atuação através de políticas públicas que se consubstanciam em ações cujo escopo último é o aperfeiçoamento do atendimento estatal à população.

Todo orçamento, por definição planejado, discutido e votado[viii] com olhos postos no bem comum, atendendo aos princípios da seriedade, transparência e moralidade, deve ser naturalmente impositivo, máxime no que diz com a satisfação de direitos fundamentais. Desvios de previsão na arrecadação dos tributos e na fixação da despesa pública, em função do desempenho da economia ou de intercorrências conjunturais se contornam através de alterações do orçamento, propostas justificadas e debatidas tempestivamente, dentro do devido processo legislativo.

Em suma, a sociedade se cansou da alta carga tributária sem retorno em serviços públicos de qualidade; cansou-se de ver seus recursos mal geridos se esvaindo pelo ralo do superfaturamento, da fraude em licitações, nos desvios de finalidade e de comportamento dos políticos e gestores públicos em geral.

Vive-se no Brasil um contexto de reiterado descumprimento da Constituição e das leis orçamentárias (casos de crime de responsabilidade, artigo 85, VI), que é o que está na raiz dos problemas atuais de gestão da coisa pública. Isso para não falar dos atentados à segurança interna (artigo 85, IV) que já não se provê e agora sofre do risco de mais incerteza.

E os “cidadãos-contribuintes” se perguntam: qual o retorno social dos impostos que pagam?

As opções decididas pelos poderes competentes do Estado estão na lei para serem cumpridas. O ajuste entre o Executivo e o Legislativo há de ser sério, responsável, jurídico, legal e não pode ser inflado, manipulado para comportar contingenciamentos logo no início do ano e depois barganhas por verbas insuficientes. O mal das finanças públicas brasileiras não é apenas de gestão, mas sobretudo de desrespeito ao direito financeiro.

Loas, pois, à Corte de Contas do Rio de Janeiro que cumpre seu papel constitucional de fiscalizar a execução orçamentária e contribui assim para a correção de rumos e afirmação da responsabilidade fiscal.



(*) Cf. in https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/contas-rejeitadas-e-orcamento-fraudado-29122020

[i] http://www.tcm.rj.gov.br/WEB/Site/Noticia_Detalhe.aspx?noticia=14462&detalhada=3&downloads=0, acesso em 16.12.2020.

[ii] A Lei por Detrás do Orçamento. Coimbra: Almedina, 2007, p. 298.

[iii] MARTÍNEZ LAGO, Miguel Ángel. Ley de Presupuestos e Constitución. Madrid: Trotta, 1998, p. 25). Cf. também MENÉNDEZ MORENO, Alejandro. Derecho Financiero y Tributario. 10ª ed., Lex Nova, Valladolid, 2009, p. 441-442.

[iv]  MARTÍN QUERALT, LOZANO SERRANO, TEJERIZO LÓPEZ, CASADO OLLERO. Curso de Derecho Financiero y Tributario. Madrid: Tecnos, 20ª ed., 2009, p. 714-715.

[v] La Configuración Constitucional del Gasto Público. Madrid: Tecnos, 1995, p. 50.

[vi] O desvio de finalidade das contribuições e o seu controle tributário e orçamentário no direito brasileiro, in Direito Tributário e Políticas Pública (DOMINGUES, José Marcos, coord. São Paulo: MP Ed., 2008, pp 299-351); e A atividade financeira do Estado e as políticas públicas para os direitos humanos, in Direito Financeiro e Políticas Públicas (DOMINGUES, José Marcos, org. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2015, pp 29-66.

[vii] ABRAHAM, Marcus. TEORIA DOS GASTOS FUNDAMENTAIS: impositividade orçamentária da elaboração à execução (UERJ, 2020, mimeo).

[viii] Ibiden.

Direito Financeiro e Tributário

A evolução do Direito Financeiro e Tributário dá-se com a velocidade e a intensidade que os tempos da Legislação, da Doutrina e da Jurisprudência têm permitido, com alguns avanços notáveis e expectativas sempre mais exigentes.

Dedicado à regulamentação da atividade financeira estatal (arrecadação, gestão e dispêndio do dinheiro público), o Direito Financeiro se ocupa então dos aspectos jurídicos de seus institutos fundamentais: o orçamento, a receita, a despesa, o crédito, e o controle de seus registro e manejo imbricado com a correspondente responsabilidade (financeira ou fiscal) com importantes e duradouras repercussões para a democracia.

Trata-se de, pelo regramento jurídico, conter o exercício do poder financeiro e tributário, vertente específica do Poder político. Especialmente no Brasil, um país tão heterogêneo e locus de resistente e histórica desigualdade social, importa afirmar que sem democracia fiscal inexiste democracia política.

Este blog, ainda experimental, tem por fim divulgar e debater temas de direito financeiro e tributário, bem como contribuir para a evolução doutrinária nessa área da ciência jurídica, haja vista a necessidade de lançar luz sobre aspectos fundamentais e controvertidos numa quadra histórica em que a afirmação da liberdade deve devolver ao Povo a soberania sobre os destinos do País. E muito se pode diagnosticar e propor a partir de um olhar crítico sobre o sistema financeiro e tributário. “Direito Financeiro e Tributário” é dedicado aos meus ex-alunos e colegas de academia, e de advocacia, a ensejar profícua interação visando o Bem Comum através do estudo para o aperfeiçoamento do Direito.

José Marcos Domingues

Advogado. Doutor em Direito Financeiro (UERJ), Professor Adjunto, Professor Titular (1981-2015). Procurador do Estado do Rio de Janeiro (1985-2013). Professor da Universidade Católica de Petrópolis. Professor Visitante (Osaka University, Washington & Lee University, Universidad Jaime I, Kwansei Gakuin University). Autor: Direito Tributário. Capacidade contributiva (Rio de Janeiro: Renovar, 2ª ed., 1998); Direito Tributário e Meio Ambiente (Rio de Janeiro: Forense, 3ª ed., 2007). Co-autor e Organizador: Direito Tributário e Políticas Públicas (São Paulo: MP Ed., 2008); Direito Financeiro e Políticas Públicas (Rio de Janeiro: GZ Ed., 2015); Diálogos de Direito Financeiro e Tributário (Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2020, no prelo).

Direito Financeiro e Tributário em evolução. Uma retrospectiva e perspectivas pós-pandemia.

José Marcos Domingues

Resumo: este artigo sumaria a gênese, autonomia e conteúdo do Direito Financeiro e Tributário, apresentando vicissitudes e méritos de sua evolução em cotejo com as possibilidades e expectativas de sua atuação e legado pós-pandemia covid-19.

Sumário: I – Introdução: gênese, autonomia e conteúdo do Direito das Finanças Públicas. II – Evolução do Direito Financeiro brasileiro; democracia fiscal. III – Controle jurídico do orçamento; políticas públicas; impositividade orçamentária. IV – Direito Tributário: a Magna Charta; a unicidade do fenômeno financeiro; sistema tributário. V – A repartição equitativa dos gastos públicos. VI – Repartição equitativa e tributação. (In-)Justiça fiscal de olhos no futuro.  VII – Considerações finais: pandemia, gasto extraordinário e legado.

Palavras-chave:  direito financeiro, direito tributário, orçamento impositivo, políticas públicas, repartição do gasto público, cidadania fiscal, pandemia, legado.

I – Introdução: gênese, autonomia e conteúdo do Direito das Finanças Públicas.

Dotado de dogmática (princípios[1]) e estrutura (institutos[2]) próprios, o Direito Financeiro (o Direito das Finanças Públicas)autonomizou-se do seu ramo mãe, o Direito Administrativo (o Direito da Administração Pública), de meados a fins do século XIX, a inícios do século XX. Assim sucedeu provavelmente em função do desenvolvimento dos empréstimos públicos e ao crescimento extraordinário da dívida pública, e ao aparecimento de novas formas de tributação, especialmente com o aumento inusitado dos impostos, tudo gerado não só pelas dificuldades financeiras dos Estados, muitos envolvidos em conflagrações históricas ao fim do século XIX [guerra austro-prussiana (1850-1866), guerra franco-prussiana (1866/1871)] e no início do século XX [a I Guerra Mundial (1914-1918)], mas também em razão de novas modalidades de riqueza decorrentes da Revolução Industrial, com a cristalização das sociedades por ações e a institucionalização das bolsas de valores, por exemplo, ensejando outras bases econômicas para a criação de tributos (sobre a renda e os valores mobiliários, etc.) compatíveis com as supra citadas necessidades financeiras públicas.

Nesse contexto, a Alemanha, ademais de haver passado por delongado processo de unificação, encontrava-se em situação financeira extremamente precária, daí a importância excepcional dada aos seus novos problemas, vindo ela a ser o berço do Direito Financeiro[3] (direito da receita e da despesa).

Importante lembrar, ainda, as demandas por direitos sociais como educação e saúde públicas, previdência social, transporte público, etc., que desaguaram em maiores necessidades públicas a serem atendidas pelo Estado através da atividade financeira na vertente da Despesa, tudo concorrendo para a transmutação das Finanças Públicas, de finanças liberais neutras em finanças funcionais, interventivas e de cunho social[4]. Desde sempre presente, a tensão entre o exercício do poder financeiro e a tutela da reserva de liberdade individual viria condicionar a especialização do Direito Financeiro, tanto no seu sentido lato, antes referido, como, compreensivelmente, na vertente do estrito regramento da tributação (exigência compulsória de recursos) em face do povo (Direito Tributário).

A evolução do Direito Financeiro e Tributário dá-se com a velocidade e a intensidade que os tempos da Legislação, da Doutrina e da Jurisprudência têm permitido, com alguns avanços notáveis e expectativas sempre mais exigentes.

Dedicado à regulamentação da atividade financeira estatal (arrecadação, gestão e dispêndio do dinheiro público), o Direito Financeiro se ocupa então dos aspectos jurídicos de seus institutos fundamentais: o orçamento, a receita, a despesa, o crédito, e o controle de seus registro e manejo imbricado com a correspondente responsabilidade (financeira ou fiscal).

II – Evolução do Direito Financeiro brasileiro; democracia fiscal.

Ora, deve-se desde logo proclamar o progressivo e benfazejo desenvolvimento do direito do orçamento entre nós, reduzindo a distância de densidade e volume para o direito dos tributos (também alhures, como indicava Giuliani Fonrouge[5], esse menor corpo foi sendo robustecido ao longo do século XX) pela tipificação como crimes de responsabilidade[6] dos atentados à probidade administrativa, inclusive à lei orçamentária, pela edição da lei de normas gerais de direito financeiro (Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964[7]); pela criação do Banco Central (Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964); pela edição da lei geral tributária (Código Tributário Nacional), em 25 de outubro de 1966; pela promulgação da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988 modernizando a estrutura do orçamento e do sistema tributário; e pela edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar, nº 101, de 4 de maio de 2000) entre outras iniciativas modernizadoras no campo da improbidade administrativa e delitos contra as finanças públicas, com importantes e duradouras repercussões para o Direito Financeiro e Tributário, e para a democracia brasileira.

Pois, especialmente num país tão heterogêneo e locus de resistente e histórica desigualdade social, importa afirmar que sem democracia fiscal, inexiste democracia política.

III – Controle jurídico do orçamento; políticas públicas; impositividade orçamentária.

A crescente importância reconhecida ao princípio do equilíbrio orçamentário como vetor da sustentabilidade do desenvolvimento, para além de mero fator inibidor da inflação debitável ao descontrole das contas públicas, dignifica o direito financeiro; por outro lado, a superação da pseuda doutrina da lei formal[8], que permitiu o controle judicial[9] do orçamento (por todos, o leading case do Plenário do STF (acórdão na ADI 2925, em 19.12.2003); e, ainda, o necessário reconhecimento da impositividade da lei orçamentária, positivado na Emenda Constitucional nº 100, de 26 de junho de 2019 — todos são elementos de dignificação do Direito Financeiro.

A vera impositividade se refere não só à obrigatoriedade de, na confecção do orçamento, obedecerem-se técnica e objetivamente às previsões de receitas e às políticas públicas, constitucionais e legais, vedando-se dissimulações ensejadoras de eventuais desvios de verbas, como também na integral execução de todas as co-respectivas rubricas de despesa, livre de artifícios semânticos. Na sua pureza, a teoria[10] não se refere à impositividade de emendas parlamentares individuais (que sugerem uma funesta reedição das caudas orçamentárias da República Velha[11]), como se fez esdruxulamente constar na Emenda Constitucional nº 86, de 2015. Em boa hora a Emenda Constitucional nº 100, de 2019, veio consagrar corretamente que “A administração tem o dever de executar[12] as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade” (novo § 10 ao art. 165). De fato, já não basta dizer-se que os recursos públicos (do povo) devem ser consumidos na despesa pública (e não pelo governante), mas é preciso justificar a o uso do dinheiro pelo Estado nas finalidades públicas (de interesse do povo legitimamente representado na confecção da Constituição e das leis). A natureza jurídica do orçamento e o seu caráter impositivo entram em questão. Percebe-se então claramente a conexão do orçamento com a separação de Poderes, que se querem independentes e harmônicos (art. 2º da Constituição).

Abram-se aqui parênteses para dizer que políticas públicas, tradução do inglês “public policies”,é expressão oriunda da Ciência Política[13] que chega ao Direito mercê de uma tendência à interdisciplinaridade que resgata em boa medida a origem comum na Ética desses ramos do conhecimento.

Assim é que Ronald Dworkin[14] denomina “’política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade, no que se distingue do princípio, que é “uma exigência de justiça ou equidade ou alguma dimensão da moralidade”, diríamos nós, um juízo fundamental de valor[15].

Segundo Fábio Comparato[16] a temática principia com Karl Loewenstein, que em 1957 propôs um nova vertente da tripartição de Poderes baseada na idéia de políticas públicas (policy determination, policy execution e policy control), que não deixa de imbricar-se com a clássica divisão de Poderes (a produção da lei, a sua execução e o seu controle de legitimidade). Entrevê-se aí o fundamento do controle jurisdicional de constitucionalidade, que há de ser finalístico, das políticas públicas, [desde logo registrando um interessante paralelo desse controle especial, com o controle geral, clássico, de juridicidade, baseado quer no abuso de direito privado (a legalidade de um ato fulminada pela ilicitude do fim visado[17]), quer no desvio de poder (que equivale a desvio de finalidade no direito público)[18]]. Na verdade, em ambos os casos deve-se considerar a teleologia das condutas, quer na ação do Estado (as políticas públicas), quer no agir das pessoas (os atos da vida jurídica).

Assim, políticas públicas se configuram como ações de Estado, integradas por atividades legislativas e administrativas, produtoras de normas e atos orientados a um fim determinado.

Ora, todo orçamento, por definição planejado, refletido e discutido com olhos postos no bem comum, atendendo aos princípios da seriedade, transparência e moralidade, entende-se naturalmente impositivo. E projetos ou programas de trabalho, políticas públicas, devem ser pensados antes da aprovação do orçamento, objetiva e racionalmente, e propostos, seja pelos Poderes, seja pelas instituições legitimadas constitucionalmente.

De fato, sob pena de voltar a ser visto como peça de ficção, o orçamento, e não só ele mas toda a tríade orçamental[19] – a lei de diretrizes orçamentárias, a lei orçamentária anual e o plano plurianual – regem-se entre outros por um princípio de seriedade em linha com o ser instrumento de planejamento (“determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”[20]) e por um princípio de  transparência[21] (já que “a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente…[22]”), vedada a dissimulação e o desvio de verbas, e inadmitido o inflar da Receita para cobrir Despesa sem lastro na capacidade contributiva da população.

Cabe lembrar a advertência de Montesquieu[23]: “Se não se distribuírem as rendas ao povo, é necessário fazê-lo ver que essas são bem administradas: mostrá-las significa, de alguma forma, permitir ao povo participar delas”.

Afinal, avizinha-se um encontro marcado entre orçamento e tributação, pois o que se requer é a adequação de prioridades consoante os valores constitucionais, planejando-se investimentos indutores do desenvolvimento socioeconômico da população a ensejar mais geração e recirculação de riqueza; otimização da estrutura e custeio da Administração Pública para servir; eficiente gestão do gasto público, que deve ser equitativo para ser profícuo; consequente redução e redistribuição da carga tributária, que se realimenta na regressividade fiscal.

IV – Direito Tributário: a Magna Charta; a unicidade do fenômeno financeiro; sistema tributário.

Quando em 1215 a Magna Charta e depois em 1689 o Bill of Rights fizeram notar ao Rei ser necessário, além da autorização parlamentar, que os tributos fossem “moderadamente fixados”, reconhecia-se inicialmente a conexão entre despesa e seu possível suprimento, mediante implícita avaliação autônoma do mérito do pedido real.

No milênio subsequente à Idade Média, as despesas públicas deixam de atender tarefas tópicas (embaixadas, guerras, etc.) para demandarem receitas perenes (tributos permanentes). Sofisticam-se as atribuições estatais e as atividades privadas, e com estas novas manifestações de riqueza, hábeis a contribuírem para a satisfação das necessidades públicas crescentes.

Surgem assim os sistemas tributários, em relação de compatibilidade[24] com as riquezas nacionais[25], pois é nessa força econômica condicionante do gasto público que podem buscar os recursos necessários à manutenção do Estado.

Na atualidade, a unicidade do fenômeno financeiro determina a imbricação da despesa[26] com a tributação, em “clara correlação entre gasto público e contribuição do indivíduo” (Micheli[27]) a exigir uma “necessária coordenação entre ingressos e gastos” (Herrera Molina[28]).

V – A repartição equitativa dos gastos públicos.

Então, toda a teorização do que seja um sistema tributário justo orienta-se, nas democracias liberais[29],  à exigência de observância da capacidade contributiva do povo destinatário do serviço público, em garantia da repartição equitativa e solidária dos gastos públicos, como decorre da leitura de Constituições como a italiana[30], a espanhola[31], e a argentina[32].

A Constituição brasileira, de idêntica epistemologia, conjuga o valor e objetivo fundamental de construção de uma “sociedade justa e solidária[33]com a determinação de graduação da carga tributária, consoante a “capacidade econômica[34]” da cidadania, prevendo que a Administração Pública obedeça à eficiência e à moralidade[35].

Se a repartição do gasto públicoexige eficiênciana gestão dos recursos arrecadados pelo Estado, a intensidade da tributação pode ser favoravelmente afetada pela redução das pressões por aumento, sempre que forem otimizados recursos.

E, então, a irresponsabilidade fiscal e a improbidade administrativa, em última análise ilícitos contra o cidadão-contribuinte, precisam ser melhor prevenidos e reprimidos, impondo-se rever o sancionamento respectivo[36] no País, hoje muito aquém de gerar efeito dissuasório, o que leva à sensação de impunidade, e o prejuízo moral não se repara e o prejuízo financeiro tende a ser coberto por novos saques à bolsa do cidadão-contribuinte, o que resulta inadmissível.

VI – Repartição equitativa e tributação. (In-)Justiça fiscal de olhos no futuro.

O trato equitativo dos recursos públicos obedece ao princípio fundamental da capacidade contributiva, na sua dimensão de potencial requisitório e no seu aspecto distributivo, a justificar o emprego da progressividade e da seletividade fiscais; e a tributação completa sua conformação como processo financeiro justo quando serve ao desenvolvimento socioeconômico, através da progressividade e da seletividade extrafiscais na implementação de políticas públicas legítimas.

São três as formas de riqueza (adquirida, acumulada e consumida) e os sistemas tributários devem responder técnica e ponderadamente às considerações acima. Erigem-se assim como hipóteses de incidência tributária prioritariamente fatos que indiciam riqueza apta (renda e capital[37]) a contribuir aos cofres públicos.

O caso brasileiro não prima pela observância dessa doutrina, face à notória regressividade[38] do sistema tributário, pois a tributação direta sobre a renda responde por apenas 7,19% do PIB, a propriedade, 1,54%, e a tributação indireta sobre os bens e serviços, 14,32%; flagrante a injustiça fiscal, malgrado a prometida “justiça e solidariedade” no bojo do constitucional “estado democrático de direito”, a verdade é que, no País, quem menos tem paga mais imposto, considerando-se que as cargas fiscais são, o mais das vezes, economicamente transferíveis ao consumo.

Não obstante, podem-se anotar avanços na direção da justiça tributária. À repositivação da capacidade contributiva e pela explicitação de principiologia protetiva dos contribuintes na Constituição de 1988, seguiram-se regimes simplificados opcionais de imposto de renda para pessoas físicas (desconto padrão) e para empreendimentos com base no lucro presumido; a isenção do imposto de renda sobre proventos de aposentadoria de portadores de moléstia grave, e a subsequente jurisprudência do STJ – REsp nº 1.836.364, de 02/06/2020 – compreendendo-a existente mesmo quando o paciente já foi tratado e está assintomático. Por outro lado, a jurisprudência do STJ pela não incidência do ICMS e do IPI no mero deslocamento de produtos entre estabelecimentos do contribuinte (Súmula nº 166, de 1996 e REsp nº 1.402.138, de 22/05/2020) e também reconhecendo a legitimidade ativa dos consumidores de energia a que repercutido pelo concessionário o ICMS cobrado pela potência contratada, mas não integralmente utilizada, para pleitear a respectiva repetição do indébito (RESP 1.299.303, de 14/08/2012), protegendo portanto a (in-)capacidade contributiva do contribuinte de fato; e a nova jurisprudência do STF admitindo a repetição do indébito de ICMS quando o fato gerador realiza-se por valor inferior ao do presumido, acatando pois a doutrina de que a base de cálculo é a expressão econômica do fato gerador, ou seja, a dimensão da capacidade contributiva do sujeito passivo (RE 593849, de 19/10/2016); também, o STF vem de definir em 8 de junho pp, a tese do tema 700 (RE 634764) não incidindo o ISS sobre o valor total das apostas, mas apenas sobre a remuneração pelo serviço de distribuição e venda de bilhetes, cupons, etc., o que realça o valor de capacidade contributiva específica, apartada de outros recortes que possam ensejar tributações diversas; esta é uma tese que dialoga com outras questões em matéria de tributação de situações complexas, como franquias comerciais e afretamentos marítimos que não a casco nu, de grande relevância econômica.

Ainda no campo dos impostos indiretos (expressivamente majoritários no sistema em vigor), arrancando do princípio geral de seletividade, vê-se um progressivo reconhecimento do mérito da tributação ambiental, que atende também a razões de capacidade contributiva em face da eventual apropriação ou capitalização privada do meio ambiente[39], que veio a ser constitucionalizado no capítulo da ordem econômica, admitindo-se às expressas o tratamento diferenciado dos produtos e serviços, e de seus processos de elaboração e prestação, conforme o respectivo impacto ambiental, ajustando-se adequadamente a medida dos tributos em questão.

Porém impõe-se ao Estado brasileiro uma autocrítica em matéria de tributação, seja por reforma constitucional, mas também através de revisão da legislação, para melhor distribuir-se a carga tributária.

No plano constitucional, mais que uma fusão de impostos e contribuições congêneres, potencialmente geradora de contumaz aumento de carga tributária, o que se requer é um rearranjo do poder de tributar, muito concentrado na União.

Na esfera infraconstitucional, há que se reordenarem bases de cálculo e alíquotas. Ora, os impostos diretos, como se viu, pouco arrecadam dos que mais têm, e muito sacam contra os que menos têm, seja como imposto de renda (onde o capital e seus dividendos são privilegiados em comparação com os rendimentos do trabalho – gravados pelo bruto e não pela renda que deles resultaria; em que a pessoa física é tributada praticamente pelos seus rendimentos brutos, devido a deduções pífias, amesquinhada atualização da tabela de incidência, aliás de fictícia progressividade), seja como imposto sobre o patrimônio e sobre as heranças e doações (cujas não incidências e medidas de valor favorecem a concentração de riquezas). E os impostos indiretos em geral precisam ser reestruturados e reavaliados, pois, a pretexto de glosa à informalidade e combate à evasão, engendram esquemas que atravancam a circulação de bens e serviços e oneram exacerbadamente, para não dizer confiscatoriamente, os consumidores menos favorecidos, ademais, cidadãos maltratados em sua dignidade humana por um serviço público ineficiente.

O sistema tributário nacional parece um item de reforço da histórica desigualdade no País.

Mas não é só; é preciso reformar também a legislação sobre a administração tributária, desburocratizando-a e abrindo-a sempre mais aos influxos da racionalidade, à inteligência humana, mas também à inteligência artificial; do contrário nem os logarítimos supremos de “VICTOR” e nem os superiores de “SÓCRATES” se encontrarão, por exemplo, com a “DRA. LUÍZA” e outros softwares que neles procuram esvaziar os corredores telemáticos da Justiça obstruídos pela projeção judicial do contencioso administrativo-fiscal mal resolvido. Do contrário, já não se falará mais de capacidade contributiva, mas de capacidade de pagamento de débitos muitas vezes irrecuperáveis no âmbito de um carnavalesco manicômio tributário[40], “que assola o País”, diria Stanislaw Ponte Preta. Neste ponto, louvem-se recentes iniciativas legislativas e administrativas quanto à transação tributária[41]). Oxalá amadureçam também outras formas de solução de litígios tributários na dimensão profícua da justiça multiportas).

VII – Considerações finais: pandemia, gasto extraordinário e legado.

Em tempos de pandemia, é preciso alertar que o custo das medidas estatais de defesa nacional para combate a essa calamidade haverá de ser suportado por toda a sociedade brasileira, onde o orçamento e o tributo têm um encontro marcado, sob a regência do Direito Financeiro e Tributário, com os olhos postos no Bem Comum. O gasto extraordinário poderá sugerir a instituição ou o incremento de tributos ordinários e mesmo a tributação extraordinária; mas, ressalve-se a necessária observância do cânone da capacidade contributiva para uma justa distribuição do ônus correspondente, reconhecendo-se que a cidadania está mais empobrecida.

Antes de mais nada, em sintonia com o aperfeiçoamento do sistema repressivo, parece necessário um novo regramento para a prevenção das fraudes e outros desvios nas compras públicas, um desafio juspolítico, máxime num ambiente federativo tão complexo, como o brasileiro. Se é verdade quesem federalismo fiscal inexiste federalismo político, então abre-se a oportunidade para repensar a disciplina do poder financeiro na Federação, que é regime de distribuição de encargos.

Nesse sentido, note-se que ao gasto extraordinário com a pandemia podem acudir o maior endividamento público, a instituição ou o incremento de tributos ordinários e mesmo a tributação extraordinária; mas, seja qual for a solução, haverá de ser observado o cânone da capacidade contributiva para que se alcance uma justa distribuição do ônus correspondente, considerando-se que a cidadania está empobrecida em comparação à situação anterior à pandemia.

Incentivos fiscais improdutivos ou privilegiados deverão ser revistos, pois, a par de sua ineficiência ou imoralidade, impactam negativamente a Receita e sua odiosa manutenção induzirá a um correspondente e não menos odioso aumento geral da carga tributária, hoje em torno de 33% do PIB. Incentivo fiscal deve ser um investimento indutor do desenvolvimento socioeconômico da população a ensejar adiante mais geração e recirculação de riqueza, e mais impostos, em círculo virtuoso.

E será preciso considerar também a constituição de um  legado positivo do covid-19, primeiramente pelo exemplar e agravado sancionamento administrativo e criminal aos desvios de verbas públicas verificados durante a pandemia; em segundo lugar, pela incorporação ao serviço público das estruturas de combate à pandemia, oriundos de um esforço fiscal sem precedentes, pois é inaceitável que bens dessa natureza sejam tratados como meras despesas correntes. É necessário otimizar a estrutura e o custeio da Administração Pública, para servir, e tornar mais eficiente a gestão do gasto público, que deve ser equitativo para ser profícuo, com a consequente redução e redistribuição da carga tributária.

Impõe-se conter o poder financeiro mal exercido pelos governantes, pelo adequado manejo do Direito Financeiro. Assim abrir-se-á aqui um caminho novo, como nas democracias consolidadas, deixando-se de padecer de ajustes fiscais que se resumem a ilegítimo arrocho sobre uma população trabalhadora doente, mal educada, submetida a carga tributária de sabor confiscatório por um Estado que não provê aos direitos fundamentais em favor do desenvolvimento e da felicidade prometidos pela ordem constitucional antes que se banalizem medidas que parecem afirmar, na imprevisão, a comoção interna e a calamidade pública. O Direito Tributário é instrumento hábil a conter o poder de tributar mal exercido pelos governantes, de molde a que à falta de recurso bastante não corresponda o recurso fácil à bolsa da cidadania fiscal, formada pelos contribuintes e utentes dos serviços públicos, que têm direito público e cívico à boa governança.

As gerações futuras devem ser preservadas do que as passadas e presentes até aqui não foram capazes de evitar.

Ao fim e ao cabo, a mudança fundamental é cultural e para que esta se faça urge a tomada de importante decisão política: educar; educar e fazer chegar a todos os brasileiros, aos de posição de mando e aos cidadãos comuns, os valores, a ciência, a consciência histórica, a solidariedade e a esperança confiante no porvir, que, assim, poderá ser muito melhor do que as tribulações atuais.

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[1] Entre outros, equilíbrio orçamentário, eficiência, economicidade, anualidade (do orçamento, do tributo e da prestação de contas), destinação pública das receitas estatais.

[2] Como o orçamento público, a receita e a despesa públicas, o crédito, a prestação de contas, a responsabilidade fiscal.

[3] Cf. GIULIANI FONROUGE, Carlos M. Direito financeiro: uma nova disciplina jurídica, in Revista Forense. Rio de Janeiro: Ed. Forense, novembro, 1941, p. 61.

[4] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16ª ed. – Rio de Janeiro: Ed. Forense, p. 30.

[5] Ibiden.

[6] Sem prejuízo da previsão já na Constituição Imperial de 1824 (art. 133).

[7] Especialmente, art. 2º; arts. 25 e 26.

[8] Doutrina iniciada na Alemanha do séc. XIX com Paul Laband e já então criticada por autores como Myrbach-Reinfeld e Philippe Zorn (cf., do Autor, O desvio de finalidade das contribuições e o seu controle tributário e orçamentário no direito brasileiro, in Direito Tributário e Políticas Públicas. DOMINGUES, José Marcos (coord.). São Paulo: MP Editora, 2007, p. 316-317; 321-332. Cf. também DUARTE, Tiago (A Lei por Detrás do Orçamento. Coimbra: Almedina, 2007, p. 298); MARTÍNEZ LAGO, Miguel Ángel. (Ley de Presupuestos e Constitución. Madrid: Trotta, 1998, p. 25); MENÉNDEZ MORENO, Alejandro (Derecho Financiero y Tributario. 10ª ed., Lex Nova, Valladolid, 2009, p. 441-442).

[9] Acórdão de 19.12.2003, publicado em 04.03.2005, assim ementado: “PROCESSO OBJETIVO – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ORÇAMENTÁRIA. Mostra-se adequado o controle concentrado de constitucionalidade quando a lei orçamentária revela contornos abstratos e autônomos, em abandono ao campo da eficácia concreta. (…). É inconstitucional interpretação da Lei Orçamentária nº 10.640, de 14 de janeiro de 2003, que implique abertura de crédito suplementar em rubrica estranha à destinação do que arrecadado a partir do disposto no § 4º do artigo 177 da Constituição Federal, ante a natureza exaustiva das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso II do citado parágrafo”.

[10] Cf. nosso O desvio de finalidade das contribuições e o seu controle financeiro e orçamentário no direito brasileiro {8. Crítica à teoria do orçamento como lei formal}, in Direito Tributário e Políticas Públicas. DOMINGUES, José Marcos (coord.). São Paulo: MP Ed., 2008, p. 299-351, esp. p. 321-332).

[11] E, ainda assim, anteriormente à Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, pela qual foi introduzido um § 1º ao modificado art. 34 da Constituição de 1981, que se lia: “As leis de orçamento não podem conter disposições estranhas á previsão da receita e á despeza fixada para os serviços anteriormente creados. Não se incluem nessa prohibição:  a) a autorização para abertura de creditos supplementares e para operações de credito como antecipação da Receita; b) a determinação do destino a dar ao saldo do exercicio ou do modo de cobrir o deficit.”].

[12] Sobre o dever de gastar créditos orçamentários, cf. MARTÍN QUERALT, LOZANO SERRANO, TEJERIZO LÓPEZ, CASADO OLLERO (Curso de Derecho Financiero y Tributario. Madrid: Tecnos, 20ª ed., 2009, p. 714-715); PLAZAS VEGA, Mauricio (Derecho de la Hacienda Pública y Derecho Tributario. Bogotá: 2006, tomo I, p. 474); ORÓN MORATAL, Germán (La Configuración Constitucional del Gasto Público. Madrid: Tecnos, 1995, p. 50); GIULIANI FONROUGE, Carlos M. (Derecho Financiero. Buenos Aires: Depalma, 7ª ed., 2001, v. 1, p. 179-180); BIDART CAMPOS (El Orden Socioeconómico en la Constitución. Buenos Aires: Ediar, 1999, p. 359-363); CORTI, Horacio G. (Derecho Constitucional Presupuestario. 2ª ed. AbeledoPerrot, Buenos Aires: 2011, p. 759.); OLIVEIRA, Régis Fernandes de (Curso de Direito Financeiro. São Paulo: 2ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p. 319-320); ABRAHAM, Marcus (Curso de Direito Financeiro Brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 222-223). E sobre a necessidade de as políticas públicas serem transparentemente justificadas para compreensão e satisfação do povo, cf  Brian Barry (apud PENNA, Saulo Versiani. A judicialização dos direitos sociais após 25 anos da Constituição Federal brasileira, in Lex Humana. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis, v. 6, n. 1, 2014, p. 196-218, http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=554&path%5B%5D=311).

[13] Cf. BUCCI, Maria Paula Dallari. “Buscando um Conceito de Políticas Públicas para a Concretização dos Direitos Humanos”, in BUCCI, Maria Paula Dallari et alli. Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo: Pólis, 2001, (Cadernos Pólis, 2), p. 5, http://www.comitepaz.org.br/download/Direitos%20Humanos%20e%20Pol%C3%ADticas%20P%C3%BAblicas.pdf, acesso em 24.06.2010.

[14] Levando os direitos a sério – trad. brasileira. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2002, p. 36.

[15] Na lição de O. A. BANDEIRA DE MELLO, os princípios gerais de direito ou são “fornecidos pela teoria geral da ciência jurídica (…)” ou “pela filosofia do direito, ante o exame dos fatos sociais e da natureza humana”. (…) e “embora preexistam ao direito positivo de dado povo, e existam fora do direito escrito de certo país, se infiltram no ordenamento jurídico de dado momento histórico, como elemento vivificador da sua civilização e cultura, uma vez que constituem sua essência” (Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: 2ª ed., Forense, v. I, 1979, p. 404, 406).

[16] “Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas”, in Revista dos Tribunais. São Paulo: Ed. RT, v. 737, março de 1997, p. 17, n. 22.

[17] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: 23ª ed., Saraiva, 1984, v. 1, p. 283.

[18] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: 24 ed. atualizada, Malheiros, 1999, p. 97.

[19] Art. 165, seus incisos e parágrafos, da Constituição Federal (CF).

[20] Art. 174 da CF.

[21] Cf. nosso A atividade financeira do Estado e as políticas públicas para os direitos humanos {4.1 Principiologia orçamentária}, in Direito Financeiro e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2015, p. 29-66, esp. p. 50.

[22] Lei de Responsabilidade Fiscal, § 1º do art. 1º.

[23]  O Espírito das Leis (trad. brasileira). São Paulo: Martin Claret, 2006, livro quinto, cap. VIII, p. 66.

[24] BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. Rio de Janeiro: 16ª edição, Forense, p. 274, 277.

[25] No Brasil, em 2018, a Carga Tributária Bruta (CTB) atingiu 33,26% do Produto Interno Bruto (PIB), cf. http://www.receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-no-brasil-capa (tabela 1, p. 1).

[26] Cf. nosso A atividade financeira do Estado e as políticas públicas para os direitos humanos {4.1 Principiologia orçamentária}, in Direito Financeiro e Políticas Públicas. DOMINGUES, José Marcos (coord.). Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2015, p. 29-66, esp. p. 50.

[27] MICHELI, Gian A. Curso de Derecho Tributario, trad. espanhola. Madrid, Ed. Derecho Financiero, 1975, p. 144.

[28] HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Económica y Sistema Fiscal. Madrid: M. Pons, 1998, p. 110).

[29] “O imposto é uma técnica liberal” lembra Gabriel Ardant: “É o meio de fazer os indivíduos contribuírem às despesas da vida em sociedade, e às adequadas necessidades dos [seus] líderes, em tudo preservando-lhes o máximo de liberdade. (…) o imposto o deixa (o cidadão) livre para organizar seus negócios como lhe convém e para escolher os produtos que venderá para obter o dinheiro necessário à liberação de sua dívida”. 

[30] Arts. 31.1 e 31.2.

[31] Art. 53.

[32] Art. 4º; e art. 75, nº 2 (revisão).

[33] Art. 3º, I.

[34] Art. 145, § 1º.

[35] Art. 37.

[36] Na Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, as penas máximas não passam de quatro anos, algumas nem de hum ou dois anos, ensejando curta prescrição em função das penas in concreto, com desproporção entre dano social e castigo merecido.

[37] Baleeiro, op. cit., p. 274.

[38] CTB = 33,26% do PIB, tendo como fontes: renda: 7,19%; propriedade: 1,54% (tributação direta = 8.73%); bens e serviços: 14,32% (tributação indireta) – cf. http://www.receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-no-brasil-capa, cit., tabela 5, p. 4.

[39] Cf nossos, Direito Tributário e Meio Ambiente – 3ª edição – Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 138; e Direito Tributário. Capacidade Contributiva – 2ª edição – Rio de Janeiro: Renovar, pp. 115-118.

[40] Expressão casada em homenagem a Alfredo Augusto Becker.

[41] Por todas, a Lei federal nº 13.988, de 14.04.2020, sobre a transação tributária no âmbito federal, e Portaria PGFN n. 9.917, de 14 de abril de 2020, especialmente arts. 18, 20 e seguintes.

Imposto de Renda e Capacidade Contributiva. “Dèja vu”?

José Marcos Domingues

Vez por outra as autoridades fazendárias repetem iniciativas de intervenção na estrutura do imposto de renda das pessoas físicas (ou pessoas humanas, naturais como bem as chama o Código Civil).

Renda, como quer a Constituição (art. 153, III) e esclarece o Código Tributário Nocional, é produto (do capital, do trabalho ou da combinação de ambos (art. 43, I). Produto é resultado positivo de uma soma algébrica de receita diminuída da despesa necessária à sua auferição. Senão inexistirá “renda-acréscimo[1]”, pois “o Fisco tem a considerar…certos abatimentos: mínimo de existência, os encargos de família, a situação dos gastos obrigatórios dos contribuintes[2].

Desde 1988, quando a Lei nº 7.713 aboliu as deduções cedulares, até a atualidade têm-se adensado os ataques ao conceito de “renda” como base possível de incidência do imposto “sobre a renda” (a simplificação para reduzir custos de contabilização e burocracia teve sabor de aumento de tributo); e assim paga-se mais desse imposto, calculado praticamente sobre o rendimento bruto (ficaram deduções insignificantes de educação e dependentes); e despesas com serviços de saúde. Juros da casa própria e aluguel residencial, como reduções do imposto, são coisas do passado… As faixas de renda da tabela do imposto de renda também foram simplificadas ao longo do tempo: o espaço entre os seus poucos degraus[3] de sorte que aos R$ 4.664,68 (pouco menos de 4,5 salários mínimos) de renda líquida mensal alcança-se rapidamente a alíquota máxima de 27,5%…  E assim, há tempos, vem-se passando de uma inconstitucionalidade útil a outra sem reação do Judiciário, que, ao influxo de um anacrônico positivismo não tem avançado em sede tributária na interpretação de leis de IRPF incoerentes com a Constituição.

Outra simplificação tem sido a não correção da tabela do imposto de renda, o que por si só representa velado aumento de tributo; essa política fiscal vem desde o Governo FHC. Estima-se que a diferença entre o IPCA acumulado de 1996 a 2019 e a correção da tabela do IRPF chegue a quase 104%[4]Simples assim: nada se provê; sem lei, toma-se mais do que o Legislativo no passado autorizou a ser tributado. E, como não pode haver tributo sem lei, tem-se aí, na inércia, uma inconstitucionalidade material, velada, à sorrelfa.

A cidadania não se pode convencer da justiça da tributação a que se vê submetida porque não encontra nela racionalidade, pois não se mostram estudos sérios quanto à sua base econômica. Tanta insinceridade estatal, faz parecer que nessa matéria falta boa dose de moralidade fiscal[5], especialização da moralidade administrativa[6], exigida pelo art. 37 da Constituição.

Agora, cogita-se de eliminarem-se as poucas restantes deduções do imposto de renda com o propalado fim de se financiar programa de renda mínima. Num superlativo “dèja vu”, aumentar-se-ia ainda mais o imposto de quem já paga demais, os assalariados de renda média; ou seja, a classe média – o segmento social que sustenta qualquer economia de consumo e dá suporte político a qualquer governo que se pretenda democrático.

Chega-se a propor até uma rediviva CPMF como forma de tributação sobre base “mais ampla”, quando a amplitude das bases tributáveis não está nas planícies populares, mas na estratosfera das grandes fortunas minoritárias que seguem quase nada oneradas em desfavor das maiorias super tributadas; onde o capital e seus dividendos são privilegiados em comparação com os rendimentos do trabalho, como nos impostos sobre o patrimônio (o ITR é uma quimera; o IPTU pouco arrecada; as heranças e doações têm incidências e medidas de valor que favorecem a concentração da riqueza); e nos impostos indiretos que impactam exacerbadamente os consumidores. O sistema tributário nacional soa a item de reforço da histórica desigualdade no país.

Se se diagnosticam erros de estrutura ou operacionalização no sistema tributário, cabe proporem-se ao Legislativo alterações, respectivamente, constitucionais e legais a fim de se adequarem os tributos aos recorrentes clamores por justiça fiscal e destravamento dos negócios obviados pelos desencontros normativos e burocratizantes.

Liberal ou socializante, qualquer que seja o matiz ideológico dos governos, não pode o Estado desatender ao axioma da igualdade, princípio geral de direito, pressuposto e constitucionalizado no mundo civilizado, e manifestado no terreno dos tributos – expressamente na Constituição brasileira e em muitas Leis Fundamentais – como é o princípio da capacidade contributiva. A lei determina a tributação porque o Estado para promover o Bem Comum precisa de recursos financeiros, que não produz, recursos esses localizados no setor privado, em mãos de indivíduos e empresas que produzem, e assim adquirem, acumulam e consomem a riqueza (o PIB); retira-os então dos que detêm aptidão, força econômica, para pagar; porque têm capacidade contributiva.

Ademais, a carga tributária (na faixa de 33%[7]) é regressiva sobre consumos necessários como alimentos e vestuário, e até material escolar; e faz corar.

No Brasil quem menos tem mais paga impostos. E o cidadão-contribuinte não os recebe de volta em serviços públicos básicos de qualidade. A escola pública é ruim. O desconto da escola particular no imposto renda, pífio.

A verdadeira reforma tributária que o Brasil reclama é a de uma virada de perspectiva. Como está na Constituição, é preciso tributar respeitando a capacidade contributiva das pessoas, pagando menos quem menos tem neste país de riqueza tão abundante quanto concentrada. Uma reforma tributária casada com uma reforma mais profunda, de índole administrativa, que permita fechar os ralos na gestão da despesa desviada, nas licitações dirigidas, nos subsídios de favor, nas injustas isenções tributárias e espúrios benefícios fiscais em geral.

Do contrário, pagam duas vezes os contribuintes o imposto e seu repique pelos erros e desvios dos governantes.


[1] Lição clássica de Baleeiro: Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: 10ª ed. Forense, 1981, p. 183.

[2] Deodato: Manual de Ciência das Finanças. São Paulo: 17ª ed. Saraiva, 1980, p. 161.

[3] Art. 677 do Regulamento do imposto de renda (RIR/2019).

[4] Cf. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-01/defasagem-na-tabela-do-imposto-de-renda-esta-proxima-de-104.

[5] Cf. a este propósito, do Autor, As contribuições parafiscais no sistema tributário nacional e a moralidade fiscalin Estudos Tributários (org. Condorcet Rezende). Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp 304-305.

[6] Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa: do conceito à efetivação, in Revista de Direito da PGE-RJ, v. 46 (1993), pp. 5-42.

[7] Cf. http://www.receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-no-brasil-capa.

Direito Financeiro e Eleições 2020

José Marcos Domingues

O Brasil parecia “parado” por causa da pandemia, mas mal-parado mesmo parece estar o respeito ao direito financeiro por causa das eleições municipais.

Eleições são marcadas pela disputa entre adversários, mas no caso do direito financeiro brasileiro a disputa soa a esdrúxula guerra entre o Poder e o Povo, de onde aquele promana, titular que é dele e que tem como escudo de defesa o próprio direito financeiro.

Basta lembrar que a Lei federal de Diretrizes Orçamentárias, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2021, sequer foi votada em julho, violando-se há muito o prazo cogente do artigo 35, § 2º, inciso II, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). É de antever-se consequente atraso na votação do orçamento propriamente dito, que deve ser aprovado até o fim da sessão legislativa em 22 de dezembro (artigo 35, § 2º, inciso III, do ADCT).

Haverá desculpas institucionais, como a pandemia e a necessidade de votar reformas que demandam emendas constitucionais, etc., mas o que se vê mesmo no discurso oficial é que tudo teve que ficar para depois das eleições, que este ano são MUNICIPAIS, como se o governo e o parlamento FEDERAIS pudessem ficar, assim, em mora constitucional!

O fato é que o orçamento é instrumento inafastável de PLANEJAMENTO. E o planejamento é “determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (artigo 174 da Constituição) o qual fica extremamente prejudicado num ambiente normativo esgarçado e corrompido como o acima descrito.

Não há campanha eleitoral nem sucessão de mandato que justifique a fraude legislativa que se está protagonizando.

Nesse ambiente hostil à cidadania fiscal, noticiam-se superfaturamentos contra o orçamento de guerra à COVID-19, cortes ou contingenciamentos de gastos em áreas fundamentais, que dizem de perto à tranquilidade e à vida das pessoas: segurança (em que as milícias grassam), saúde (em que o SUS está em estresse) e educação (onde as escolas são hipossuficientes).

Ora, na cidade do Rio de Janeiro, quase 60% do território está tomado pelo crime organizado, traficante ou não, miliciano ou não. A primeira razão de ser do Estado é precisamente prover a segurança pública, da qual dependem os direitos fundamentais, como a igualdade, a liberdade, a propriedade. Se um território está em paz, ainda assim é preciso investir em segurança para que esta não se deteriore e o caos não se instale. E sem a dignidade a vida humana vale nada.

A declaração de direitos fundamentais cede à sua ilegítima postergação financeira. A segurança dos cidadãos, ponto de partida do Estado de Direito, cede à malversação dos fundos públicos.

O que dizer, então, da saúde e da educação públicas, em franca decrepitude, desfavorecendo o povo que mantém a estrutura de poder desviada de suas funções primordiais.

E os “cidadãos-contribuintes” se perguntam: qual o retorno social dos impostos que pagam? Mais importante lei votada anualmente, o orçamento deveria ordenar (não apenas autorizar) a despesa, pois à carga tributária obrigatória corresponde o gasto justo e necessário para prover às políticas públicas, tudo objeto de lei.

Vive-se no Brasil um contexto de reiterado descumprimento da Constituição e das leis orçamentárias, que é o que está na raiz dos problemas de gestão da coisa pública.

Incerteza financeira e insegurança jurídica: é do que se trata, máxime quando se vê o estado das polícias, escolas, estradas e hospitais do País, para não falar de risco habitacional, de mobilidade e de insegurança energética que assolam os brasileiros, que pagam a conta.

Impõe-se respeito ao objetivo fundamental de construção de uma sociedade soberana, justa e solidária, através de políticas públicas probas, com eficiência e moralidade, sem o que não há repartição equitativa dos recursos públicos. O Brasil não precisa de mais incerteza jurídica, tão desnecessária ao que é mais urgente: o investimento que garanta o desenvolvimento, sem desvios, sem superfaturamentos.

Esse projeto constitucional não pode ser postergado a cada dois anos por conta de eleições que deviam celebrar a democracia e não postergá-la.

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